«(…? Tínhamo-las perdido de vista. Depois, hoje, reencontradas, são elas
que me reencontraram, e me obrigam a lembrar. Língua insensata que avança, magnificamente
autónoma como um corpo de delfim, a correr sem esforço ao lado do meu corpo,
ultrapassando-o, iludindo-o, rápido através da massa de água que não consegue
sustê-lo. Nada dizer, nada mais dizer depois de Iniji. Mas não é isso que pretende esta língua. Porque nos tornaria mudos? A música entra
pelos ouvidos e deve sair pela boca, ou então pelas ancas. Iniji não existe. Cada vez que dela nos apercebemos, a língua
estala e a palavra morre. Interrompida antes de entrar no mundo. Reflexos, talvez,
porquanto as suas palavras não são palavras. Se retemos um nome, felizes por saber
aquilo que surgirá, ele rebenta. Não há nomes, só bolhas. Balbuceios de bebé, Iniji, Ananiá Iniji, Djã dã dã, Irritilili.
A língua que me não quer falar enlouquece, faz turbilhonar a agulha,
acelera, liberta os seus enxames de faíscas. A fascinação hipnótica agarra-nos
por dentro do corpo, bem gostaríamos de afastar os olhos e regressar às vozes que
falam, em baixo, que nos chamam. Mas o medo de perder uma única destas palavras
voadoras, de perder a dança, a natação, a vida! Porventura pela primeira vez
fixamo-nos a alguma coisa. A língua de Iniji
não é um logro. As linguagens pesadas tropeçam nas suas consoantes, nas
sílabas, como um cego tropeça nos móveis de um quarto desconhecido. Já não
pretendemos falar todas as línguas. As palavras encontram-se além, sempre além,
e é preciso apanhá-las depressa. As vogais que soam, ressoam.
Talvez seja necessário abandonar tudo. Abandonar tudo isso, os adornos
medíocres, as máscaras, os anéis, os cintos coleccionados, tudo isso com que nos
ataviaram. Desejaríamos acreditar que eram só palavras, as mais inconsistentes.
Se quiséssemos, apagar-se-iam, as palavras que diziam que, que acreditavam que... Se julgavam, elas, não as
julgaríamos nós, um dia?
Iniji
[…]
Ananiá Iniji
AnâãAnimá Iniji
Orrenaniâã Iniji
e Iniji inanimada
Sai meio corpo
meio corpo morto
Ananejá Iniji
Anajetá Iniji
Anamajetá Iniji
A bilha não entorna a ciência
O fogo não derrama o leite
A chave,
onde está a chave?
Os insectos passam-na uns aos outros
As vassouras varrem-na
Tu sim, tu; mas eu não tem
Eva sou eu
órfã da Ideia
saída, portas fechadas
Já não agarra, Iniji
Iniji fala com palavras
que não são as suas palavras
Djá
Djã,Djã
Djã dã, dã,
que tornam Iniji inânime
sem regresso nos carris de Irritilili
Quantos vespões no verão da sua cabeça
Não te detenhas nele, Iniji
[…]
Poema de Henri Michaux
In As Magias, Herberto Helder, Poemas mudados para
Português, Assírio & Alvim, edição 0257, 2010, ISBN 978-972-37-0086-2.
Cortesia de Assírio e Alvim/JDACT