domingo, 21 de julho de 2013

Há dias assim... As Magias. Herberto Helder. «A fascinação hipnótica agarra-nos por dentro do corpo, bem gostaríamos de afastar os olhos e regressar às vozes que falam, em baixo, que nos chamam»

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«(…? Tínhamo-las perdido de vista. Depois, hoje, reencontradas, são elas que me reencontraram, e me obrigam a lembrar. Língua insensata que avança, magnificamente autónoma como um corpo de delfim, a correr sem esforço ao lado do meu corpo, ultrapassando-o, iludindo-o, rápido através da massa de água que não consegue sustê-lo. Nada dizer, nada mais dizer depois de Iniji. Mas não é isso que pretende esta língua. Porque nos tornaria mudos? A música entra pelos ouvidos e deve sair pela boca, ou então pelas ancas. Iniji não existe. Cada vez que dela nos apercebemos, a língua estala e a palavra morre. Interrompida antes de entrar no mundo. Reflexos, talvez, porquanto as suas palavras não são palavras. Se retemos um nome, felizes por saber aquilo que surgirá, ele rebenta. Não há nomes, só bolhas. Balbuceios de bebé, Iniji, Ananiá Iniji, Djã dã dã, Irritilili.
A língua que me não quer falar enlouquece, faz turbilhonar a agulha, acelera, liberta os seus enxames de faíscas. A fascinação hipnótica agarra-nos por dentro do corpo, bem gostaríamos de afastar os olhos e regressar às vozes que falam, em baixo, que nos chamam. Mas o medo de perder uma única destas palavras voadoras, de perder a dança, a natação, a vida! Porventura pela primeira vez fixamo-nos a alguma coisa. A língua de Iniji não é um logro. As linguagens pesadas tropeçam nas suas consoantes, nas sílabas, como um cego tropeça nos móveis de um quarto desconhecido. Já não pretendemos falar todas as línguas. As palavras encontram-se além, sempre além, e é preciso apanhá-las depressa. As vogais que soam, ressoam.
Talvez seja necessário abandonar tudo. Abandonar tudo isso, os adornos medíocres, as máscaras, os anéis, os cintos coleccionados, tudo isso com que nos ataviaram. Desejaríamos acreditar que eram só palavras, as mais inconsistentes. Se quiséssemos, apagar-se-iam, as palavras que diziam que, que acreditavam que... Se julgavam, elas, não as julgaríamos nós, um dia?

Iniji
[…]
Ananiá Iniji
AnâãAnimá Iniji

Orrenaniâã Iniji
e Iniji inanimada

Sai meio corpo
meio corpo morto

Ananejá Iniji
Anajetá Iniji
Anamajetá Iniji

A bilha não entorna a ciência
O fogo não derrama o leite

A chave,
onde está a chave?
Os insectos passam-na uns aos outros
As vassouras varrem-na

Tu sim, tu; mas eu não tem
Eva sou eu
órfã da Ideia
saída, portas fechadas

Já não agarra, Iniji
Iniji fala com palavras
que não são as suas palavras

Djá
Djã,Djã
Djã dã, dã,
que tornam Iniji inânime

sem regresso nos carris de Irritilili
Quantos vespões no verão da sua cabeça
Não te detenhas nele, Iniji
[…]

Poema de Henri Michaux

In As Magias, Herberto Helder, Poemas mudados para Português, Assírio & Alvim, edição 0257, 2010, ISBN 978-972-37-0086-2.

Cortesia de Assírio e Alvim/JDACT