O Princípio
«(…) Rei morto, rei posto! O país não tem de esperar tempo algum para
que o novo rei se adapte às coisas do mando. O infante Duarte, homem feito de
quarenta e dois anos, nascido em Viseu em Outubro de 1391, está preparadíssimo para assumir o governo do reino. Rei
morto, rei posto! As cerimónias fúnebres foram rapidamente esquecidas, para
darem lugar a outras de júbilo e confirmação. O futuro rei, infante de grande
fervor católico e afeição fraternal, reuniu-se em conselho com os seus irmãos, órgão
restrito e elitista onde só eles cabiam, certo de certificar o seu poder
através da afectividade dos maiores senhores do reino, seus partidários e
semelhantes. Quem melhor do que a
família próxima para dar conselhos, motivar ou manifestar fidelidade?
Reuniram-se os infantes Henrique, João, Fernando e Afonso de Barcelos.
Quem não esteve presente nesse conselho nem nas exéquias do pai, e devia ter
estado, foi o infante Pedro, para completar a irmandade da Ínclita Geração. Porquê
Ínclita Geração? Porque ilustre, solidária, culta, poderosa, como Luís
Vaz de Camões a viu no excelso verso que lhes dedicou no Canto IV de Os Lusíadas.
Não consentiu a morte tantos anos
que de Herói tão ditoso se lograsse
Portugal, mas os coros soberanos
do Céu supremo quis que povoasse;
mas para defensão dos Lusitanos
deixou, quem o levou, quem governasse
e aumentasse a terra mais que dantes;
Ínclita geração, altos Infantes!
In Os Lusíadas, Canto IV, v.
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Hora boa, hora má. Antes ainda de o conselho
familiar se reunir, seria de transcendente importância purificar a alma do futuro
rei. O seu confessor, chamado a ouvir as culpas que a consciência de Duarte juntara, absolveu-o de todos os
pecados. Pecados teria, temos todos, mas
seriam muitos ou poucos os do futuro monarca? Graves, perversos ou ingénuos? Fossem os
que fossem, Duarte, por amor à causa
divina, nunca assumiria o governo do país sem lavar primeiro a alma. O futuro Eloquente, como ficou conhecido,
desejava parecer bem, não queria naquele dia tão importante da sua vida que
alguma coisa fosse deixada ao acaso, já bastavam outras cerimónias das quais
não gostava de se lembrar. Mas isso eram águas passadas. Tanto mais que ele e a
futura rainha formavam um par unido, e mesmo apaixonado.
Não seria por a cerimónia do seu casamento não ter tido o brilho que
outras suas congéneres tiveram que ele agora, no dia da sua maior façanha,
deixaria de corresponder ao que dele se esperava. Pelo sim pelo não, Duarte desta vez tratou de tudo até aos
mais ínfimos pormenores, porque depois da morte do pai já ninguém o
superiorizava. Dali para a frente seria o rei de Portugal, todos o deveriam ver
e sentir como tal, tanto quanto os primeiros sinais na maior parte das vezes
são determinantes. Compenetrado, nesse 15
de Agosto de 1433, o
príncipe vestiu-se dos melhores panos e cores que a sua condição real merecia e
permitia, espreitando aqui e ali para ver se tudo estava na maior ordem e
concórdia. Contudo, Duarte acabou
por ignorar a imponderabilidade, a regra madrinha dos grandes acontecimentos.
Nesta cerimónia, como noutras, aparecem sempre os desmancha-prazeres,
alguém ou alguma coisa que chega para estragar a festa. Quando Duarte se preparava para entrar no Paço
da Alcáçova, onde iria receber o ceptro real numa cerimónia celebrada ao ar
livre, foi abordado por Mestre Abraão Guedelha, físico da
sua Casa, seu médico particular, homem de grandes capacidades na arte de curar
doentes e antever as coisas.
O que é que lhe quereria o
mestre com tanta urgência? Estranhou Duarte em pensamento. Paralelamente à função de físico, o judeu Abraão
Guedelha era estudioso dos astros, ocupação que não era totalmente
incompatível com as suas tarefas de médico, antes pelo contrário. Esotérico
e divinatório por um lado, cientista exacto por outro, chamavam-no a
fazer previsões de tempo, de
oportunidade, de carácter, ao mesmo tempo que curava feridas, fazia
punções e receitava drogas. Mostrava como Júpiter interferia nos mais calados e
menos nos mais audaciosos, opunha-se a certas manifestações que estivessem sob
a influência da intercepção lunar com o Sol, lia nos astros sinais que os
outros não conseguiam compreender, ligando-os depois à vida das pessoas, com
resultados respeitáveis.
Convinha, pensou o
físico, que o futuro chefe dos
portugueses, antes de fazer o mais importante investimento da sua vida, soubesse
o que os astros lhe reservam. Guedelha conhecia o Mapa Natal ou Carta Astrológica do rei, sabia que para este infante pouco dado a
folias teriam os astros de se posicionar sem interferências, bem regulados nos seus
lugares, para não haver surpresas. Nada de situações ambíguas, intermédias,
porque estas revelavam maus presságios. Por isso, assim tão convencido, estudou
a astrologia horária, um mapa feito no momento para obter dele a resposta à
questão que tinha posto a si próprio: Estarão
os astros à hora do levantamento do rei bem posicionados para lhe propiciar um
excelso reinado?
A resposta revelou-se negativa. Preocupado, socorreu-se da astrologia selectiva, que lhe mostrará a
melhor hora, o momento azado para tornar feliz o reinado do presuntivo rei. O
que lhe diz a observação dos astros desta vez: Só depois do meio-dia,
intuiu o cientista».
In Jorge Sousa Correia, O Mistério do Infante Santo, A Revelação dos
Pecados da Ínclita Geração, Clube do Autor, Lisboa, 2013, ISBN
978-989-724-067-6.
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