O Português e o Universalismo
«(…) Em segundo lugar: é o génio
universal possuído por certas raças e não
possuído por outras? Não vale a pena repetir a demonstração do absurdo
desta ideia, que se evidencia na sua simples enunciação. Ela supõe a aceitação
de outro absurdo: o conceito qualitativo de raça, absurdo, creio, porque o logos iguala as raças humanas, permite a
comunicação universal. Parece-me, pois, que há no artigo de Castelo Branco Chaves
uma contradição irredutível. Por um lado, o autor define o universal em função
do contingente histórico, separando as duas coisas: o universal está nas leis
do espírito; mas; por outro lado, afirmando que os Portugueses, que são, como
os Gregos, etc., um facto histórico, não trazem dentro de si um génio universal, confundiu os dois
planos que pretendeu distinguir.
Assim, fez o universal solidário com o contingente e avulso; assim,
negou a lei pelo facto. Insisto na contradição: ou o logos é o universal e, portanto, não é específico de certas raças;
ou, se é específico de certas raças, não é o universal. Ou há a esfera da inteligibilidade,
a possibilidade de formular leis, ou há, somente, factos avulsos,
irreproduzíveis, únicos, milagrosos. Ou há a relacionação de termos, a fórmula,
ou há, somente, génios caprichosos, que se metem repousadamente na Grécia e
fogem, não se sabe porquê, das margens do Tejo. Não será, porém, um facto que o
logos floresceu mais entre os Gregos que entre os Portugueses?
Isto pode ser verdadeiro; e assim o creio. Nem todo o condicionalismo
político-económico é terra propícia à semente do logos. O logos é sempre
idêntico a si próprio, como o lume que, quando se acende, é sempre lume. Mas,
como o lume, nem sempre o logos se
pode acender.
A história da cultura poderia ser encarada como uma série de tentativas,
algumas realizadas, quase todas frustradas, para acender dentro da vida
colectiva o lume do logos. Há certas
condições históricas mais propícias que outras. Foram, porventura, especialmente
propícias em certo momento da história da Grécia e extraordinariamente adversas
em toda a história dos Portugueses. Talvez que o próprio facto histórico da
expansão mundial (donde certos concluem, simplistamente, o nosso
universalismo) tenha criado condições que frustraram o acender-se a chama.
Há uma estagnação na vida mental portuguesa a partir da segunda metade do
século XVI:
Não mais, Musa, não mais, que a lira tenho
destemperada, e a voz enrouquecida,
e não do canto, mas de ver que venho
cantar a gente surda e endurecida.
O favor com que mais se acende o engenho
não no dá a pátria, não, que está metida
no gosto da cobiça e na rudeza
de uma austera, apagada e vil tristeza,
Quem sabe se muitas sementes não
foram então destruídas? Há lume de logos
na poesia de Camões, não na epopeia,
à qual me parece bem cabida a observação de Castelo Branco Chaves, mas na
lírica, onde precisamente se evidencia aquela resistência interior que dá a individualidade inconfundível,
aquele dramatismo que provoca o
desajuste entre o que permanentemente se é e tudo o que vai sendo a
fantasmagoria da vida. E Camões acendeu a sua chama na de outros,
porventura menos pujante. O sentimento da unidade e da multiplicidade simultâneas
do ser é o fundo da poesia de Bernardim Ribeiro, se não estou em erro
(como o será, mais tarde, da de Fernando Pessoa). Todavia, este
sentimento das antinomias conduziu sabe-se a quê: a um jogo de paradoxos
verbais nos poetas do século XVII. Deixou de se sentir a antítese real, lógica,
e chegou-se à pura antítese verbal.
Talvez noutros domínios pudesse fazer-se a mesma observação. João de Barros
e o seu continuador Couto têm, possivelmente, em certo grau, a noção da
sequência e causalidade históricas; da pequena influência do indivíduo
contingente (outro génio, outro deus criado pela imaginação primitiva;
exemplo: o infante Henrique) na tessitura dos acontecimentos; da interdependência
entre certas condições históricas e certos resultados. Mas, como esta noção
aparece associada, ainda, a uma crença na missão providencial dos Portugueses,
os homens do século XVII deixaram-se escorregar por aqui até chegarem a uma
historiografia (frei Bernardo de Brito, etc.) reveladora de uma inacreditável
inconsciência crítica e moral. Uma prosa quase perfeita serviu então para dar
expressão a um curioso estado de infantilidade mental, tanto mais curioso
quanto é certo que no século anterior um grupo de intelectuais portugueses
(Duarte Pacheco, Garcia de Orta, Camões, etc.) tinha insinuado uma atitude de
dúvida metódica em relação às autoridades admitidas. O século XVII português
oferece-nos o espectáculo de uma cultura frustrada, vazia de experiência e de
intelecto, em que as palavras chamam as palavras; uma espécie de delírio manso,
calmo, convicto, incorrigível e fixo». In António José Saraiva, Para a História da
Cultura em Portugal, o Português e o Universalismo, Gradiva Publicações,
Lisboa, 1996, ISBN 972-662-459-2.
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