As Antepassadas Portucalenses (783-1014)
«(…) Da rainha Creusa de Braga davam conta breves
textos escritos pelo monge Dulcídio.
Informações que Teresa deve ter
conhecido na versão que deles faria o bispo Sampiro, Por volta do ano 1000. Crónica guardada como ouro em
pano no palácio real de Leão, no qual ela habitaria a partir dos sete anos. É
provável que estes conhecimentos tivessem sido alargados com outras fontes,
como as genealogias reais transmitidas pelas crónicas, os relatos das mulheres
que a rodeavam, e sobretudo o pormenorizado registo que os mosteiros medievais
tinham dos seus fundadores (às vezes até à oitava geração), essenciais para
resolver conflitos sobre títulos de propriedade entre os seus descendentes, na
hora de fazer a divisão de bens ou colmelum. Tudo isso permitiria a Teresa tomar consciência de que
descendia de uma antiga estirpe de mulheres portucalenses rainhas de Leão, o reino
cristão mais importante da Península Ibérica que tinha sucedido ao das
Astúrias.
O seu último monarca tinha ocupado e repovoado a região a sul do Minho,
e incorporado definitivamente no reino das Astúrias as cidades de Braga e
Porto. Esta zona entre o Minho e o Douro seria com o tempo o solar originário
do condado, mais tarde, reino independente, de Portugal. Antes de morrer o último
monarca asturiano, os limites chegariam a Coimbra. Depois, os três filhos
repartiram entre si o reino e intitularam-se reis, respectivamente de Leão,
Galiza e Astúrias, mas reconhecendo a proeminência do trono do primeiro. Ao
segundo filho, Ordoño, coube o reino da Galiza, cujo território compreendia
então, aproximadamente, a região espanhola actualmente com esse nome e a parte
de Portugal até ao Mondego.
Por volta de 896, Ordoño
casou com Elvira Mendes, filha do conde Hermenegildo Guterres, conquistador
e repovoador de Coimbra em 871.
Desse casal descenderia, por parte do pai, Teresa
de Portugal, sete gerações depois. Elvira foi, pois, trisavó da sua
bisavó. O pai de Elvira era o nobre mais poderoso a sul do Minho naqueles
tempos. É provável que, por esse motivo, Elvira acabasse por se tornar esposa
de Ordoño, para o que certamente contribuiu também o facto de estar
directamente aparentada com a casa real. A sua mãe, Ermesinda, era filha do
conde Gatón, repovoador do Bierzo. Segundo uma antiquíssima tradição, esse
conde descendia de Mauregato e Creusa de Braga.
Por volta de 908, depois de
uma campanha pelo Algarve, Ordoño regressou a Viseu, sede privilegiada do
reino, com uma grande quantidade de prisioneiros e ricos despojos de guerra.
Pouco tempo depois adoeceu. Algumas fontes falam de lepra, embora talvez se
tratasse de gota. Elvira, que já então tinha quatro filhos, três varões e uma mulher,
que tinham sobrevivido aos seus muitos partos, nunca mais voltaria a ficar grávida.
Contrariamente ao que se costuma pensar, na altura o nascimento de filhas não
era visto de forma negativa, dado que tanto na realeza como na nobreza ainda
não estava assente completamente o princípio da linhagem. As formações
nobiliárias eram mais clãs de grupos de pais
e filhos, de irmãos e irmãs, como base para o estabelecimento de alianças e
para a circulação de bens. Não se vê ainda o chefe da casa que decide
solitariamente e organiza a sucessão com base na entrega ao filho primogénito;
as decisões testamentárias, tomadas no leito de morte e em presença do
arcebispo confessor, são expressamente autorizadas pela esposa e pelos filhos,
também presentes [...] claro testemunho da distribuição equilibrada entre
filhos e filhas dos bens do grupo, integrados indistintamente pelos da esposa e
pelos do esposo.
Daí que se ganhasse mais casando as mulheres, que geralmente incorporavam
o património dos maridos ao seu próprio clã, do que os varões. Daí muitos
filhos nunca casarem. E de abundarem os bastardos, fruto das suas uniões com
pessoas de estratos inferiores. Ou que não fosse raro o adultério cometido por
um solteiro com uma mulher casada, e isso apesar de se tratar de um dos pecados
mais graves. As mulheres que o cometiam, em princípio podiam perder a sua
condição de pessoas livres e ser rebaixadas à categoria dos servos da gleba. Os
condes, que então tinham funções judiciais, costumavam comutar essa pena a
troco da entrega de uma parte do património da pecadora. Vinhas, casas e
extensas herdades passavam assim para as suas mãos. Esse seria um dos
principais modos de enriquecimento da nobreza peninsular até ao ano 1000.
Dentro da realeza, o adultério feminino, o único que era considerado
como tal, pagava-se com a morte. Assim o estabelecia o direito visigodo. E
quando uma rainha ficava viúva devia entrar para um convento. Procurava-se
assim proteger os filhos de ambiciosos meios-irmãos. Com o decurso do tempo
essa disposição viria a ser cada vez menos aplicada.
Em 914, Elvira Mendes deixou
as terras viseenses para se instalar em Leão. O sogro tinha morrido e o marido
passou de rei da Galiza a soberano leonês, onde reinaria como Ordoño II (914-924).
O infante Ramiro, segundo filho do casal real, permaneceria em Viseu, cidade na
qual possivelmente tinha nascido. Na capital, a primeira rainha de Leão de
estirpe portucalense habitaria num edifício que em grande parte era de adobe.
Não é possível saber se até então tinha vivido numa construção especial, mas a
preferência que a família real leonesa teria sempre pelo seu palácio de Viseu
leva a pensar que tinha vantagens sobre os outros. Fosse como fosse, no futuro Teresa de Portugal demonstraria
sentir atracção por aquele local.
A rainha Elvira foi uma apaixonada pela religião. Uma crónica conta o
deleite com que recebeu, em 919,
Rosendo, um sobrinho por parte do pai, nascido em Santo Tirso, perto do Porto,
de quem já todos diziam maravilhas pelo seu bom carácter e a sua vocação para o
estudo. O rapaz faria carreira na Igreja e chegaria a ser proclamado santo. Não
menos importante foi a função de Elvira como restauradora de antigos mosteiros
do Bierzo, região muito vinculada a Jimena
Muñiz, mãe de Teresa de
Portugal, e que pertenciam ao património familiar de Elvira através do
seu avô materno, o conde Gatón».
In Marsilio Cassotti, D. Teresa, A Primeira Rainha de Portugal,
Prefácio de G. Oliveira Martins, Attilio Locatelli, A Esfera dos Livros, 2008,
ISBN 978-989-626-119-1.
Cortesia da Esfera dos Livros/JDACT