Com
Camões na encruzilhada
«(…) Novidade em 1577 (ou já estaria ela na edição
perdida de 1527?) é um último capítulo em que se trata da trasladação do
corpo do príncipe; segundo então se diz, teria sido um sobrinho do Rei de Fez,
com o tio ofendido por injúrias recebidas, auxiliado por dois cativos cristãos,
numa noite muito escura e de muita chuua»,
a furtar o ataúde e a programar a sua
passagem para Arzila, de onde em conjunto partiram para o Restelo, e aí foram,
com mostras de muita alegria e comoção, acolhidos por Afonso V; fizeram-se
procissões sendo juntos todos os
prelados, Bispos e Arcebispo com a clerezia; ouvida uma pregação, partiram
em cortejo para a Sé, onde se depositaram os ossos, transbordando o
contentamento de todos em jogos de canas e corridas de touros, apesar da
consternação do jovem rei por não querer o Mouro converter-se ao Cristianismo e
ficar em Portugal: despedido delRey e
da Raínha e do Príncipe dom João, e de toda a corte (que de todos era prezado)
se embarcou pera Fez.
Celebradas as devidas
exéquias, Afonso V cumprindo todas as
cousas, que à sua alma pertenciam, como era obrigado, mandou sua ossada
pera o moesteiro da Batalha da ordem de Sam Domingos, com muita honra, pompa e solenidade.
Fundamento histórico
para tal muçulmana simpatia, parece não existir; fez-se, na verdade, o resgate
do corpo do Infante, em 1471, mas
tudo indica que em diferentes circunstâncias.... Claro, que ao Trautado de
frei João, dedicado ao Infante Henrique (1460), sempre teria de faltar a
notícia sobre a trasladação da ossada do cativo, apenas vários anos depois
conseguida por troca com familiares do rei de Fez, entretanto feitos
prisioneiros pelos portugueses, a convençã
a que se refere Rui de Pina. Nós, no entanto, não iríamos secundarizar este
passo, pelo simples facto de, em futuras considerações, ainda um sobrinho do
rei de Fez connosco vir uma vez mais a travar agradável conhecimento. Quanto,
porém, a um Infante émulo de um Régulo cantado por Horácio e por outros
celebrado, nem traços surpreendemos nestes escritos. O Infante Fernando sofre e
ajuda os seus a suportar o sofrimento, não temos dúvidas, mas nunca por vontade de pela
pátria se sacrificar; não se oferece, aceita, não se
auto-martiriza, resigna-se a um martírio imposto.
De Arzila, segundo
Álvares, concorda em fazer petição ao rei, seu irmão:
- (…) E por aazo das cortes e dos conselhos que se faziam sobre esto em Portugal, nom embargando que este Ifante escrepvese por seu livramento o melhor que entendia, Çala bem Çala se anojava da perlonga por nom veer o recado que esperava. (…) Esto todo [o pedido para a libertação] escrepveu este Ifante a elREy e a[a] Raínha e aos Ifantes seus irmãos.
Temendo o envio para
Fez, insiste:
- (…) temendo a aspereza dos vindoiros trabalhos, escrepveo a elRey todalas razões que tiinha pera o aver de livrar de tanto prigo e esperadas tribulações, pedindo-lhe por merçee que quisesse aver dele piedade e tomase compaixom de sua atribulada vida, a qual a qual a ele aprouvera que já fezera fim (…).
Não são, porém,
semelhantes, mas compreensíveis fraquezas que retiram ao desditado príncipe a
aura da santidade, pois é por Deus e pela fé que sofre sem desespero: a prática
religiosa, como ficou dito, acompanhou-o sempre, à conquista de Tânger se
dispôs armado do sinal da + sob a guarda do
alferezde Jhesu Christo Sã Miguel, que em seu estandarte levava pintado, os
trabalhos, os aceitou como quem todo
padecia por amor de Deus.
Que espanta que, antes
de morrer, o viessem confortar a Virgem, S. João Evangelista (que aos pés da
cruz de Cristo estiveram) e o seu
protector S. Miguel? Sempre os poderes celestes se preocuparam com os
homens que a eles souberam acudir, tanto nas ditas como nas desditas.
Estaria Camões a par dos factos e das linhas em torno deles urdidas pelos
narradores dos acontecimentos históricos? Repito que sempre nos têm
dito ter ele manuseado escritos de Rui de Pina e podemos admitir, sem qualquer espécie
de garantia, que lhe não fosse estranha a Crónica de 1527. Ele, porém, escrevia um poema
épico, propunha-se aclamar os valorosos feitos dos portugueses, sobretudo
aqueles que mais amor pátrio revelavam, era bom apreciador dos clássicos e
escrevia numa época em que a cultura antiga pontificava nas letras e nas artes.
O seu poema adopta esquemas de Virgílio e de Homero, os seus heróis são
modelados muitas vezes pelos de gregos e latinos, porque não converter então
(ou arrecadar o que provavelmente, em parte, o povo já havia sancionado)
o realmente mártir Fernando num real e voluntário mártir da portuguesa valentia na defesa
da integridade do Império?
Em situação semelhante,
dera Régulo o exemplo de condenar-se para salvar Roma dos Cartagineses,
recusara a liberdade (a de um homem) para que livres de jugo alheio ficassem
outros (muitos homens); o paradigma estava encontrado, encaixava-se bem na
epopeia, era grato a Portugal e ao seu rei. Pela nossa parte, vamos avançar, se
não com certezas, pelo menos, com alguma convicção. Porque, não se pode negar
que, com responsabilidade ou não de Camões,
meio envolvida pela lenda, sem deixar de conservar o seu fundo histórico, a
acarinhada figura do Infante
conservaria, em escritos posteriores, a marca de uma austera resistência à
entrega de Ceuta em troca da sua própria salvação».
In Maria Idalina Rodrigues, Do Muito Vertuoso Senhor Ifante Dom Fernando a El Príncipe Constante, Via Spiritus 10, 2003.
Cortesia de Via
Spiritus/JDACT