terça-feira, 9 de julho de 2013

O Príncipe Constante. Pedro Calderón de la Barca. O Infante Santo. Maria Idalina Rodrigues. «Estaria Camões a par dos factos e das linhas em torno deles urdidas pelos narradores dos acontecimentos históricos? Podemos admitir, sem qualquer espécie de garantia, que lhe não fosse estranha a Crónica de 1527»

jdact

Com Camões na encruzilhada
«(…) Novidade em 1577 (ou já estaria ela na edição perdida de 1527?) é um último capítulo em que se trata da trasladação do corpo do príncipe; segundo então se diz, teria sido um sobrinho do Rei de Fez, com o tio ofendido por injúrias recebidas, auxiliado por dois cativos cristãos, numa noite muito escura e de muita chuua», a furtar o ataúde e a programar a sua passagem para Arzila, de onde em conjunto partiram para o Restelo, e aí foram, com mostras de muita alegria e comoção, acolhidos por Afonso V; fizeram-se procissões sendo juntos todos os prelados, Bispos e Arcebispo com a clerezia; ouvida uma pregação, partiram em cortejo para a Sé, onde se depositaram os ossos, transbordando o contentamento de todos em jogos de canas e corridas de touros, apesar da consternação do jovem rei por não querer o Mouro converter-se ao Cristianismo e ficar em Portugal: despedido delRey e da Raínha e do Príncipe dom João, e de toda a corte (que de todos era prezado) se embarcou pera Fez.
Celebradas as devidas exéquias, Afonso V cumprindo todas as
cousas, que à sua alma pertenciam, como era obrigado, mandou sua ossada pera o moesteiro da Batalha da ordem de Sam Domingos, com muita honra, pompa e solenidade.
Fundamento histórico para tal muçulmana simpatia, parece não existir; fez-se, na verdade, o resgate do corpo do Infante, em 1471, mas tudo indica que em diferentes circunstâncias.... Claro, que ao Trautado de frei João, dedicado ao Infante Henrique (1460), sempre teria de faltar a notícia sobre a trasladação da ossada do cativo, apenas vários anos depois conseguida por troca com familiares do rei de Fez, entretanto feitos prisioneiros pelos portugueses, a convençã a que se refere Rui de Pina. Nós, no entanto, não iríamos secundarizar este passo, pelo simples facto de, em futuras considerações, ainda um sobrinho do rei de Fez connosco vir uma vez mais a travar agradável conhecimento. Quanto, porém, a um Infante émulo de um Régulo cantado por Horácio e por outros celebrado, nem traços surpreendemos nestes escritos. O Infante Fernando sofre e ajuda os seus a suportar o sofrimento, não temos dúvidas, mas nunca por vontade de pela pátria se sacrificar; não se oferece, aceita, não se auto-martiriza, resigna-se a um martírio imposto.
De Arzila, segundo Álvares, concorda em fazer petição ao rei, seu irmão:
  • (…) E por aazo das cortes e dos conselhos que se faziam sobre esto em Portugal, nom embargando que este Ifante escrepvese por seu livramento o melhor que entendia, Çala bem Çala se anojava da perlonga por nom veer o recado que esperava. (…) Esto todo [o pedido para a libertação] escrepveu este Ifante a elREy e a[a] Raínha e aos Ifantes seus irmãos.
Temendo o envio para Fez, insiste:
  • (…) temendo a aspereza dos vindoiros trabalhos, escrepveo a elRey todalas razões que tiinha pera o aver de livrar de tanto prigo e esperadas tribulações, pedindo-lhe por merçee que quisesse aver dele piedade e tomase compaixom de sua atribulada vida, a qual a qual a ele aprouvera que já fezera fim (…).
Não são, porém, semelhantes, mas compreensíveis fraquezas que retiram ao desditado príncipe a aura da santidade, pois é por Deus e pela fé que sofre sem desespero: a prática religiosa, como ficou dito, acompanhou-o sempre, à conquista de Tânger se dispôs armado do sinal da + sob a guarda do alferezde Jhesu Christo Sã Miguel, que em seu estandarte levava pintado, os trabalhos, os aceitou como quem todo padecia por amor de Deus.
Que espanta que, antes de morrer, o viessem confortar a Virgem, S. João Evangelista (que aos pés da cruz de Cristo estiveram) e o seu protector S. Miguel? Sempre os poderes celestes se preocuparam com os homens que a eles souberam acudir, tanto nas ditas como nas desditas.
Estaria Camões a par dos factos e das linhas em torno deles urdidas pelos narradores dos acontecimentos históricos? Repito que sempre nos têm dito ter ele manuseado escritos de Rui de Pina e podemos admitir, sem qualquer espécie de garantia, que lhe não fosse estranha a Crónica de 1527. Ele, porém, escrevia um poema épico, propunha-se aclamar os valorosos feitos dos portugueses, sobretudo aqueles que mais amor pátrio revelavam, era bom apreciador dos clássicos e escrevia numa época em que a cultura antiga pontificava nas letras e nas artes. O seu poema adopta esquemas de Virgílio e de Homero, os seus heróis são modelados muitas vezes pelos de gregos e latinos, porque não converter então (ou arrecadar o que provavelmente, em parte, o povo já havia sancionado) o realmente mártir Fernando num real e voluntário mártir da portuguesa valentia na defesa da integridade do Império?
Em situação semelhante, dera Régulo o exemplo de condenar-se para salvar Roma dos Cartagineses, recusara a liberdade (a de um homem) para que livres de jugo alheio ficassem outros (muitos homens); o paradigma estava encontrado, encaixava-se bem na epopeia, era grato a Portugal e ao seu rei. Pela nossa parte, vamos avançar, se não com certezas, pelo menos, com alguma convicção. Porque, não se pode negar que, com responsabilidade ou não de Camões, meio envolvida pela lenda, sem deixar de conservar o seu fundo histórico, a acarinhada figura do Infante conservaria, em escritos posteriores, a marca de uma austera resistência à entrega de Ceuta em troca da sua própria salvação».

In Maria Idalina Rodrigues, Do Muito Vertuoso Senhor Ifante Dom Fernando a El Príncipe Constante, Via Spiritus 10, 2003.

Cortesia de Via Spiritus/JDACT