quarta-feira, 17 de julho de 2013

A Comenta Secreta. Que segredos guardam Afonso Henriques e o mestre templário Gualdim Pais? Maria João Pardal e Ezequiel Marinho. «Vestiam roupagens pobres e defendiam apenas as necessidades básicas que ansiavam proporcionar às suas famílias. Tinham fome e os tributos que pagavam aumentavam assustadoramente»

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O Mensageiro
«(…) Mandou chamar o seu capitão da guarda e ordenou-lhe: - O Mestre Abraão que se apronte! Preparai uma guarnição de homens e mandai-me chamar o meu pajem. - Sim Mestre, farei como ordenais ! - e retirou-se, com uma vénia. Alguns minutos depois, Renato abeirou-se da porta e perguntou se podia entrar. - Entra Renato, disse-lhe Gualdim, franzindo a testa, quero falar contigo. Depois de uma breve pausa continuou. - Em breve farás dezoito anos; és já um homem feito! Demonstras bravura e valentia… também inteligência… características que fazem de ti um bom e gentil-homem. - Obrigado, senhor - disse Renato, com um enorme orgulho e alguma timidez. - Estás há algum tempo junto de mim; tenho acompanhado a tua educação, conforme me pediu teu pai… paz à sua alma... mas ainda não estás comigo! Já passaram quatro anos desde a sua morte, e sabes que delegou em mim a responsabilidade da tua educação, pouco antes do seu passamento.
Ambos se benzeram, e Renato não escondeu algum pesar. – Há muitas coisas que ainda não sabes a meu respeito, continuou Gualdim, mas que a seu tempo, te revelarei. Apesar de ainda não teres sido armado cavaleiro, dominas já a lide das armas e reconheço em ti outras características que serão úteis a este projecto do Rei. Estou seguro de que serás capaz de honrar a minha escolha, quando o dever te chamar. És filho de teu pai, um homem justo e virtuoso, e certo disso, não tenho dúvidas que o destino se te revelará. Estás à minha guarda e vais começar comigo uma viagem. Vais comigo para Theodomar! - Theodomar, senhor?... aqui no condado?... mas... será uma viagem longa? - O entusiasmo do jovem era bem visível. - Sim Renato. Theodomar, Nabância... ou Sellium são nomes para o mesmo lugar. Os antigos chamam-lhe Theo – mar, o mar de Deus... conto contigo Renato, meu jovem amigo? Estás comigo?
 - Claro, senhor, acompanhar-vos-ei, se preciso for, até ao infinito. Irei, se assim o desejardes. Estou convosco. Sois meu Mestre e Senhor, farei o que vos aprouver! - Renato sabia que muitos perigos se iriam, por certo, atravessar no caminho, mas estava confiante. Tinha fé. Ambos levaram a mão ao peito em sinal de promessa, tocando os corações com o punho fechado. Em breve começariam a viagem. Gualdim Pais, com a sua voz forte e possante cantarolava, feliz, uma melodia antiga. Sentia-se cheio de energia.

Destino Sombrio
O dia nascia, anunciando-se sombrio. Atiçado pelo vento, o fogo rangia furiosamente, carregando os céus de uma atmosfera densa e alaranjada. O fumo tornava o ar irrespirável. Na granja de Turquel dos coutos de Al-Cobaxa alguns casebres eram consumidos pelas chamas, deixando diversas famílias em alvoroço. As pessoas da aldeia vizinha contemplavam, amedrontadas, o cenário de terror, e comentavam os acontecimentos da noite anterior. Era já a terceira vez esse ano que as populações de Turquel, Maiorga e Évora de Al-Cobaxa se rebelavam contra a prepotência dos monges. Supervisionados pelos irmãos conversos [existiam três tipos de monges: os noviços, que ainda não tinham professado; os professos, que recebiam o hábito branco e faziam os votos de pobreza, castidade e obediência e os conversos, que se caracterizavam por usar barba, renunciar aos seus bens pessoais e fazer trabalhos servis], que por causa da sua barba comprida e bigode receberam a alcunha de barbudos, homens e mulheres eram explorados a troco de quase nada; trabalhavam para que o excedente da produção agrícola enriquecesse a Ordem de Cister. Os irmãos conversos eram a segunda comunidade do mosteiro. A sua função nos lugares conventuais era de subalternidade estando-lhes destinados os trabalhos mais rudes.
No dia anterior, depois de uma tarde de provocações junto ao Mosteiro de Santa Maria de Al-Cobaxa, em que as populações unidas, procuravam junto da comunidade cisterciense [os monges de Cister (Cistel) ou de Cluny têm origem nos beneditinos. Cistel uma localidade ao Sul de Dijon, onde nasce o conde Henrique. Mantêm o mesmo lema dos seus antecessores ora lege et labora (rezae trabalha)] o apoio para os seus males e injúrias, a tragédia aconteceu! Um grupo de camponeses combinara juntar-se ao pôr-do-sol, no final dos trabalhos, armado de utensílios agrícolas e carregando consigo a vontade de justiça que animava os seus corações famintos. Vestiam roupagens pobres e defendiam apenas as necessidades básicas que ansiavam proporcionar às suas famílias. Tinham fome e os tributos que pagavam aumentavam assustadoramente.
Ao fim de algumas horas de protesto, os homens de Maiorga, animados já pelo vinho, começaram numa troca de violências verbais que acabaram em conflito com as restantes gentes das granjas vizinhas. Sem explicação aparente, num acto de deplorável desespero, viram-se, ao fim de breves minutos, envoltos em acesas e inúteis escaramuças, resultando daí um triste cenário de rostos ensanguentados, corpos feridos, roupagens desfeitas e um cheiro de vingança que viria a encobrir as verdadeiras razões do massacre que se aproximava. Sancho Viegas, um camponês robusto, de carácter firme e decidido, encabeçava a revolta do povoado de Turquel. O seu lavor era o trabalho do ferro e demais metais. A sua impulsividade nem sempre lhe trouxera bons augúrios, no entanto, era um homem capaz de lutar até ao seu limite pelas causas em que acreditava e isso merecia a admiração dos restantes aldeões. Já se habituara a contar com diversos inimigos, especialmente aqueles que ficavam incomodados com o facto de ser irmão do mestre dos conversos, fr. Martinho Viegas, monge de coro que chefiava as granjas de Maiorga e Turquel».

In Maria João Martins Pardal e Ezequiel Passos Marinho, A Comenda Secreta, Ésquilo, Lisboa, 2005, ISBN 972-8605-58-7.

Cortesia de Ésquilo/JDACT