Escolher modos de não agir foi sempre a atenção e o escrúpulo da minha
vida. In Bernardo Soares
«(…) Consoante vão pondo pé em terra, correm a abrigar-se, os
estrangeiros murmuram contra o temporal, como se fôssemos nós os culpados deste
mau tempo, parece terem-se esquecido de que nas franças e inglaterras deles
costuma ser bem pior, enfim, a estes tudo lhes serve para desdenharem dos
pobres países, até a chuva natural, mais fortes razões teríamos nós de nos
queixarmos e aqui estamos calados, maldito inverno este, o que por aí vai de
terra arrancada aos campos férteis, e a falta que ela nos faz, sendo tão
pequena a nação. Já começou a descarga das bagagens, sob as capas rebrilhantes
os marinheiros parecem manipanços de capuz, e em baixo os bagageiros portugueses
mexem-se mais à ligeira, é o bonezinho de pala, a veste curta, de oleado, assamarrada,
mas tão indiferentes à grande molha que o universo espantam, talvez este desdém
de confortos leve a compadecerem-se as bolsas dos viajantes, porta-moedas como se
diz agora, e suba com a compaixão a gorjeta, povo atrasado, de mão estendida, vende
cada um o que tiver de sobejo, resignação, humildade, paciência, assim
continuemos nós a encontrar quem de tais mercadorias faça no mundo comércio.
Os viajantes passaram à alfândega, poucos como se calculava, mas vai
levar seu tempo saírem dela, por serem tantos os papéis a escrever e tão
escrupulosa a caligrafia dos aduaneiros de piquete, se calhar os mais rápidos descansam
ao domingo. A tarde escurece e ainda agora são quatro horas, com um pouco mais
de sombra se faria a noite, porém aqui dentro é como se sempre o fosse, acesas
durante todo o dia as fracas lâmpadas, algumas queimadas, aquela está há uma
semana assim e ainda não a substituíram. As janelas, sujas, deixam transluzir
uma claridade aquática.
O ar carregado cheira a roupas molhadas, a bagagens azedas, à
serapilheira dos fardos, e a melancolia alastra, faz emudecer os viajantes, não
há sombra de alegria neste regresso. A alfândega é uma antecâmara, um limbo de
passagem, que será lá fora. Um homem grisalho, seco de carnes, assina os
últimos papéis, recebe as cópias deles, pode-se ir embora, sair, continuar em
terra firme a vida. Acompanha-o um bagageiro cujo aspecto físico não deve ser
explicado em pormenor, ou teríamos de prosseguir infinitamente o exame, para
que não se instalasse a confusão na cabeça de quem viesse a precisar de
distinguir um do outro, se tal se requer, porque deste teríamos de dizer que é
seco de carnes, grisalho, e moreno, e de cara rapada, como daquele foi dito já,
contudo tão diferentes, passageiro um, bagageiro outro. Carrega este a mala grande
num carrinho metálico, as duas outras, pequenas em comparação, suspendeu-as do
pescoço com uma correia que passa pela nuca, como um jugo ou colar de ordem.
Ca fora, sob a protecção do beiral largo, pousa a carga no chão e vai procurar
um táxi, não costuma ser necessário, habitualmente há-os por ali, à chegada dos
vapores. O viajante olha as nuvens baixas, depois os charcos no terreno
irregular, as águas da doca, sujas de óleos, cascas, detritos vários, e é então
que repara em uns barcos de guerra, discretos, não contava que os houvesse
aqui, pois o lugar próprio desses navegantes é o mar largo, ou, não sendo o
tempo de guerra ou de exercícios dela, no estuário, largo de sobra para dar
fundeadouro a todas as esquadras do mundo, como antigamente se dizia e talvez
ainda hoje se repita, sem cuidar de ver que esquadras são. Outros passageiros
saíam da alfândega, acolitados pelos seus descarregadores, e então surgiu o
táxi espadanando águas debaixo das rodas. Bracearam os pretendentes alvoroçado,
mas o bagageiro saltou do estribo, fez um gesto largo. É para aquele senhor,
assim se mostrando como até a um humilde serventuário do porto de Lisboa,
quando a chuva e as circunstâncias ajudem, é dado ter nas mãos sóbrias a
felicidade, em um momento dá-la ou retirá-la, como se acredita que Deus a vida.
Enquanto o motorista baixava o porta-bagagens fixado na traseira do automóvel,
o viajante perguntou, pela primeira vez se lhe notando um leve sotaque
brasileiro, Por que estão na doca aqueles barcos, e o bagageiro respondeu, ofegando,
ajudava o motorista a içar a mala grande, pesada. Ahn, é a doca da marinha, foi
por causa do mau tempo, rebocaram-nos para aqui anteontem, senão eram bem
capazes de garrar e ir encalhar a Algés.
Chegavam outros táxis, tinham-se atrasado, ou o vapor atracara antes da
hora esperada, agora havia no terreiro feira franca, tornara-se banal a
satisfação da necessidade. Quanto lhe devo, perguntou o viajante. Por cima da
tabela é o que quiser dar, respondeu o bagageiro, mas não disse que tabela
fosse a tal nem o preço real do serviço, fiava-se na fortuna que protege os audaciosos,
ainda que descarregadores. Só trago dinheiro inglês comigo. Ah, isso tanto faz,
e na mão direita estendida viu pousar dez xelins, moeda que mais do que o sol
brilhava, enfim logrou o astro-rei vencer as nuvens que sobre Lisboa pesavam.
Por causa dos grandes carregos e das comoções profundas, a primeira
condição para uma longa e próspera vida de bagageiro é ter um coração robusto,
de bronze, ou redondo teria caído o dono deste, fulminado. Quer retribuir a
excessiva generosidade, ao menos não ficar em dívida de palavras, por isso
acrescenta informações que lhe não pediram, junta-as aos agradecimentos que não
lhe ouvem. São contratorpedeiros, senhor, nossos, portugueses, é o Tejo, o Dão,
o Lima, o Vouga, o Tâmega, o Dão é aquele mais perto. Não fazem diferença,
podiam mesmo trocar-lhes os nomes, todos iguais, gémeos, pintados de
cinzento-morte, alagados de chuva, sem sombra viva nos conveses, as bandeiras molhadas
como trapos, salvo seja e sem ao respeito querer faltar, mas enfim, ficámos a
saber que o Dão é este, acaso tornaremos a ter notícias dele».
In José Saramago, O Ano da Morte de Ricardo Reis, Editorial Caminho,
Lisboa, 1995, ISBN 972-21-0286-9
Cortesia de Caminho/JDACT