sexta-feira, 19 de julho de 2013

A Tertúlia Ocidental. António José Saraiva. «Laços de harmonia, de sentimento, de pensamento como aqueles que nos unem meia dúzia de rapazes que vivem em Portugal, somos os mais fortes de todos. E assinava: Confrade no futuro»

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O Desterrado
«(…) Oliveira Martins também partiu, mais tarde, mas não para uma viagem de recreio. A bem dizer, emigrou em busca de pão. Santa Eufémia é hoje uma aldeia silenciosa e pobre nas faldas da serra Morena. No centro há uma igreja românica de tijolo maciço. O largo da igreja é ladeado por umas casas caiadas de branco sujo cobrindo cantaria de granito e de adobe como na Beira Baixa. Pouca gente passa no largo, homens idosos estão acocorados na soleira das casas. Mas no tempo de Oliveira Martins os mineiros e suas mulheres davam uma certa animação ao lugar. Ele gostava de ouvir os pares que dançavam e cantavam a malagueña, no intervalo do trabalho, debaixo das suas janelas. Olhando para cima, vêem-se penedias ameaçadoras em forma de dentes. Em direcção ao vale, oliveiras e sobreiros. Ao longe, chaminés apagadas atestam uma actividade mineira já extinta.
Santa Eufémia está longe de tudo. A estação de caminho de ferro em Almadén dista 40 km por caminhos da serra e não há aldeia mais perto. Oliveira Martins era obrigado a aceitar este desterro porque tinha de sustentar a mãe e os irmãos, a um dos quais, Guilherme, pagaria mais tarde estudos universitários. Chegara de Lisboa no calor do verão de 1870, acompanhando talvez o patrão, o engenheiro inglês George Ellicot, e trazendo consigo a esposa, D. Maria Vitória. Deixava para trás amigos, tertúlias e salas de redacção, largava o jornal República, que nesse mesmo ano tinha fundado.
Que vinha ele fazer nas minas? Que relações eram as suas com os mineiros? Seu irmão Guilherme é discreto quanto a este ponto. Já depois da sua morte, sugere que Joaquim Pedro desempenhara funções mais humanas que técnicas: Estava sempre pronto para lhes dispensar o seu auxílio, quer curando-lhes as feridas do corpo, quer melhorando-lhes as da alma. Era como se fosse um encarregado de pessoal. Ellicot era seu amigo, e a carta que vinte anos depois lhe escreveu de Paris, num francês impecável, revela-o um homem culto e interessado em doutrinas sociais.
Para combater o isolamento, Oliveira Martins tratou de escrever aos amigos. Correspondia-se com Teófilo Braga desde 1868 e tratava-o no desterro como um irmão de almas, considerando-o como pertencente ao grupo de rapazes de quem dependia o futuro da Pátria: Laços de harmonia, de sentimento, de pensamento como aqueles que nos unem meia dúzia de rapazes que vivem em Portugal - somos os mais fortes de todos. (Sic.) E assinava: Confrade no futuro.
O futuro era tudo quanto possuía este jovem de 25 anos, sem fortuna, sem diploma, sem nome, e que ganhava a vida longe da família, em terra alheia: Para obter o pão de cada dia por cá ando no meio de trabalhos maçadores e estúpidos que levo alegre porque sinto que sem eles que me dão o sossego da minha consciência. E, generosamente, atribuía ao seu destinatário a mesma grandeza de alma que imaginava em si, dizendo na continuação da carta: O seu caracter, meu caro Teophilo, é daqueles que podem entender isto que eu lhe escrevo, porque o pratica. Com efeito há um verdadeiro orgulho, o sentimento de uma personalidade livre, de uma consciência sossegada, nesta nulidade exterior, neste não ser cousa nenhuma que já agora - creio eu – será toda a minha vida!
Oxalá o fora! Oliveira Martins não era, como Antero, um carácter diamantino, embora inconstante, nem, como Teófilo, um pesado bloco de chumbo. Era uma espada de rijo metal com zonas ou betas frágeis por onde facilmente se quebrava. Essas zonas frágeis manifestavam-se nos momentos mais inoportunos. A sua força estava na resistência à fadiga, na continuidade do trabalho, em épocas de rotina. Mas muitas vezes hesitava ou recuava quando era preciso tomar decisões cruciais. Foi o que lhe aconteceu na jogada final da vida, breve jogada preparada de longe, mas em que se perdeu tudo o que até então se preparara. Esse momento, no entanto, ainda vem longe.
Agora o futuro está em gestação: Aqui, no meu deserto, trabalho entretanto, e agora mesmo estou refundindo e coordenando os meus estudos de direito público e economia social: é um meio de fixar ideia donde poderá talvez resultar um livro útil para a futura revolução portugueza; e nos intervallos de leituras que exigem concentração e esforço, vou refundindo o meu theatro. Martins pretendia intervir, como se vê, na futura revolução portuguesa, ele que linhas atrás tinha dito não querer ser cousa nenhuma. E logo a seguir atribui-se o papel de testemunha muda: Toda a minha ambição, meu caro Teophilo, é que no futuro se possa dizer: havia alguém que não era míope. Esta, parece-me, deve ser toda a nossa ambição, e a nossa retribuição também. Deixai-os folgar na saturnal pública! E alem de tudo, dado este movimento de abstenção e sabendo aguentá-lo por uma vida inteira, não é isto só por si, um golpe mortal dado no mundo constituído?»

In Tertúlia Ocidental. Estudos sobre Antero de Quental, Oliveira Martins, Eça de Queiroz e Outros, António José Saraiva, Herdeiros de António José Saraiva e Gradiva Publicações, 1996, ISBN 972-662-475-4.

Cortesia de Gradiva/JDACT