O Desterrado
«(…) Oliveira Martins também partiu, mais tarde, mas não para
uma viagem de recreio. A bem dizer, emigrou em busca de pão. Santa Eufémia é
hoje uma aldeia silenciosa e pobre nas faldas da serra Morena. No centro há uma
igreja românica de tijolo maciço. O largo da igreja é ladeado por umas casas
caiadas de branco sujo cobrindo cantaria de granito e de adobe como na Beira
Baixa. Pouca gente passa no largo, homens idosos estão acocorados na soleira
das casas. Mas no tempo de Oliveira Martins os mineiros e suas mulheres
davam uma certa animação ao lugar. Ele gostava de ouvir os pares que dançavam e
cantavam a malagueña, no intervalo do
trabalho, debaixo das suas janelas. Olhando para cima, vêem-se penedias
ameaçadoras em forma de dentes. Em direcção ao vale, oliveiras e sobreiros. Ao
longe, chaminés apagadas atestam uma actividade mineira já extinta.
Santa Eufémia está longe de tudo. A estação de caminho de ferro em Almadén
dista 40 km por caminhos da serra e não há aldeia mais perto. Oliveira
Martins era obrigado a aceitar este desterro porque tinha de sustentar a
mãe e os irmãos, a um dos quais, Guilherme, pagaria mais tarde estudos universitários.
Chegara de Lisboa no calor do verão de 1870,
acompanhando talvez o patrão, o engenheiro inglês George Ellicot, e trazendo consigo
a esposa, D. Maria Vitória. Deixava para trás amigos, tertúlias e salas
de redacção, largava o jornal República,
que nesse mesmo ano tinha fundado.
Que vinha ele fazer nas minas?
Que relações eram as suas com os
mineiros? Seu irmão Guilherme é discreto quanto a este ponto. Já depois
da sua morte, sugere que Joaquim Pedro desempenhara funções
mais humanas que técnicas: Estava sempre pronto
para lhes dispensar o seu auxílio, quer curando-lhes as feridas do corpo, quer melhorando-lhes
as da alma. Era como se fosse um encarregado de pessoal. Ellicot era seu
amigo, e a carta que vinte anos depois lhe escreveu de Paris, num francês
impecável, revela-o um homem culto e interessado em doutrinas sociais.
Para combater o isolamento, Oliveira Martins tratou de escrever
aos amigos. Correspondia-se com Teófilo Braga desde 1868 e tratava-o no desterro como um irmão de almas, considerando-o
como pertencente ao grupo de rapazes de quem dependia o futuro da Pátria:
Laços de harmonia, de sentimento, de pensamento
como aqueles que nos unem meia dúzia de rapazes que vivem em Portugal - somos
os mais fortes de todos. (Sic.) E assinava: Confrade no futuro.
O futuro era tudo quanto
possuía este jovem de 25 anos, sem fortuna, sem diploma, sem nome, e que
ganhava a vida longe da família, em terra alheia: Para obter o pão de cada dia por cá ando no meio de trabalhos maçadores
e estúpidos que levo alegre porque sinto que sem eles que me dão o sossego da minha
consciência. E, generosamente, atribuía ao seu destinatário a mesma grandeza
de alma que imaginava em si, dizendo na continuação da carta: O seu caracter, meu caro Teophilo, é daqueles
que podem entender isto que eu lhe escrevo, porque o pratica. Com efeito há um
verdadeiro orgulho, o sentimento de uma personalidade livre, de uma consciência
sossegada, nesta nulidade exterior, neste não ser cousa nenhuma que já agora -
creio eu – será toda a minha vida!
Oxalá o fora! Oliveira Martins não era, como Antero, um carácter
diamantino, embora inconstante, nem, como Teófilo, um pesado bloco de
chumbo. Era uma espada de rijo metal com zonas ou betas frágeis por onde
facilmente se quebrava. Essas zonas frágeis manifestavam-se nos momentos mais
inoportunos. A sua força estava na resistência à fadiga, na continuidade do trabalho,
em épocas de rotina. Mas muitas vezes hesitava ou recuava quando era preciso
tomar decisões cruciais. Foi o que lhe aconteceu na jogada final da vida, breve
jogada preparada de longe, mas em que se perdeu tudo o que até então se
preparara. Esse momento, no entanto, ainda vem longe.
Agora o futuro está em gestação: Aqui,
no meu deserto, trabalho entretanto, e agora mesmo estou refundindo e
coordenando os meus estudos de direito público e economia social: é um meio de
fixar ideia donde poderá talvez resultar um livro útil para a futura revolução
portugueza; e nos intervallos de leituras que exigem concentração e esforço,
vou refundindo o meu theatro. Martins pretendia intervir, como se vê, na futura
revolução portuguesa, ele que linhas atrás tinha dito não querer ser cousa nenhuma. E logo a seguir atribui-se o
papel de testemunha muda: Toda a minha
ambição, meu caro Teophilo, é que no futuro se possa dizer: havia alguém que
não era míope. Esta, parece-me, deve ser toda a nossa ambição, e a nossa
retribuição também. Deixai-os folgar na saturnal pública! E alem de tudo, dado
este movimento de abstenção e sabendo aguentá-lo por uma vida inteira, não é
isto só por si, um golpe mortal dado no mundo constituído?»
In Tertúlia Ocidental. Estudos sobre Antero de Quental, Oliveira
Martins, Eça de Queiroz e Outros, António José Saraiva, Herdeiros de António
José Saraiva e Gradiva Publicações, 1996, ISBN 972-662-475-4.
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