sábado, 20 de julho de 2013

O Bebedor Nocturno. Herberto Helder. A Vida Breve. «Pouca gente tem coragem. Tenho coragem mas com um pouco de medo. Pessoa feliz é quem aceitou a morte. Quando estou feliz demais, sinto uma angústia pelo estado amordaçado da crise, da incerteza do quotidiano. Assusto-me»

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Fragmento do Cairo
Quando eu a cinjo e ela me abre os braços,
sou como um homem que regressa da Arábia,
impregnado de perfumes.

Desço o rio numa barca,
ao ritmo dos remadores.
Com um feixe de canas ao ombro,
vou para Mênfis,
e direi a Ptah, senhor da verdade:
‘Dá-me esta noite a minha amada’.
Este deus é como um rio de vinho,
com seus maciços de canas.
E a deusa Sekhmet é como se fosse a sua moita de
flores.

E a deusa Earit, seu lótus em botão.
E o seu lótus aberto, o deus Nefertum.
E a minha amada será feliz.
Levanta-se a aurora através da sua beleza.
Mênfis é um cesto de tomates
posto frente ao deus de rosto puro.

Bom é mergulhar, bom,
ó deus meu amigo,
é banhar-me diante de ti.
Adivinhas-me quando se molha
minha túnica de fino linho real.
E juntos entramos nas águas,
e à tua frente eu saio das águas,
agarrando entre os dedos
um estupendo peixe encarnado.
Olha para mim.

Tanto se alvoroça meu coração, de puro amor,
que metade da minha cabeleira se desfaz,
quando corro ao teu encontro.

Para que me vejas sempre igual e bela
diante de ti,
eu componho os meus cabelos.


Poema do Velho Testamento
Sôbolos rios que vão por Babilónia, sentados
chorámos as lembranças de Sião,
e nos salgueiros pendurámos as harpas
contra o vento.

Porque nos pedem cânticos e alegria.
Entoai, dizem eles, as canções de Sião.

Mas como em terra estranha elevaremos um canto
ao Eterno?
Que me seque a mão direita se te esquecer,
Jerusalém!

E a língua paralise se abandonares
as câmaras da memória,
se Jerusalém não for a mais alta alegria.

Lembra-te, ó Eterno, de quando
gritavam na terra de Jerusalém: - Devastai-a
até às raízes!

Feliz daquele que em suas mãos erguer teus filhos
e na pedra os esmagar, ó devastadora
filha de Babel!

De dia grito e gemo à noite, à tua frente:
abre-te aos meus soluços. Que te atinja minha dor.
Bêbeda de infortúnio, a minha vida rola.
Estou deitado junto aos mortos e fechado no silêncio,
perdido entre aqueles de quem se perdeu a memória.
A tua fúria me lança nos lugares tenebrosos,
contra mim desencadeias teus turbilhões obscuros.

Apartaste de meu lado os que eram os amigos.
Ao cativo sem esperança o choro consome os olhos.
Digo o teu nome nas trevas, estendo-te as mãos
incansáveis
mas que esperas tu dos mortos? Que te importam
sombras idas?

Louvam-te acaso a graça na perdição do abismo?
Conhece-se o que é justiça na noite do esquecimento?

Cada manhã meu clamor se levanta para ti:
porque afastas tua face do cerco da minha voz?
Moribundo desde a infância, eu sofri os teus terrores,
teus espantos me esmagaram.
Rodeado pelas ondas, já me afundo sob as vagas.
Minhas mãos abrem-se e fecham no grande país
das trevas.

Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste
e te afastas dos meus gritos?
Brado em vão e sem repouso.
Encho os dias e as noites com as vozes desta angústia,
e o teu silêncio me cerca.

Chamavam por ti os antigos, e os apelos ecoavam
em tuas altas escarpas.
Eu porém sou como um verme, a vergonha do
meu Povo.
Escarnece quem me vê:
Confia no teu Senhor, porque salva aqueles que
ama.

Foste tu quem me tirou do ventre de minha máe,
tu que eras o meu Deus desde o fundo da matrï2.
Oh, não te afastes mais de mim, quando a angústia
me rodeia.
[…]

Poemas de Herberto Helder, in “O Bebedor Nocturno

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