quarta-feira, 24 de julho de 2013

A Comenta Secreta. Que segredos guardam Afonso Henriques e o mestre templário Gualdim Pais? Maria João Pardal e Ezequiel Marinho. «Tinha uma particularidade, provocada por uma antiga ferida de guerra que lhe tolhia os movimentos do braço esquerdo e lhe valera a alcunha de ‘maneta’ por parte dos aldeões»

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Destino Sombrio
«(…) Era também o camponês mais rico das redondezas, facto que estimulava ainda mais invejas, dado que possuía terras suas e estava isento de impostos. Tinha uma particularidade, ao que se dizia provocada por uma antiga ferida de guerra que lhe tolhia os movimentos do braço esquerdo e lhe valera a alcunha de maneta por parte dos aldeões. Vivia junto de sua mulher, Carmen, e sua filha, Catarina, jovem de rara beleza, cobiçada por todos os homens dos arredores pelos seus finos traços e brancura cândida. O seu cabelo de fogo, comprido e ondulado, contrastava com a pele clara marcada por sinais visíveis que, naqueles tempos, eram considerados impuros. O azul cristalino dos seus olhos, no entanto, em nada revelava essa impureza, de que tantas vezes tinha sido acusada. No braço direito, a jovem transportava um sinal que, no dia do seu nascimento, a condenara a um destino peculiar, profetizado ao ser concebida naquele solstício.
Ao cair da noite Carmen limpava as feridas de Sancho Viegas, que chegara a casa coberto de sangue em virtude das escaramuças junto ao mosteiro. Catarina aquecia água para embeber as compressas que a mãe colocava nas costas de seu pai. - Mais devagar mulher! protestava Sancho, que não disfarçava as dores, percebendo-se na sua voz a irritação que lhe provocavam. - Assim ainda me esfolas a carne! Cuidado mulher, o meu ombro! As tuas mãos cortam como lâminas! - continuava a protestar. - Já falta pouco... está quase... Catarina, essa água vem ou não vem? - Carmen mantinha a calma. Já sabia que de nada adiantava exaltar-se, especialmente na situação em que o marido se encontrava... só provocaria maior irritação e agressividade. - Vou a caminho, minha mãe... aqui está a água! – Catarina estava apreensiva! Os acontecimentos da tarde tinham-na feito pressentir más notícias.
 - Ajuda-me filha, molha essa compressa e coloca-lhe o unguento enquanto eu... - foram interrompidas por violentas pancadas na porta. - Quem será a esta hora da noite? - Quem está aí? - perguntou Carmen enquanto pegava instintivamente numa forquilha. Ninguém respondeu e os fortes embates que ameaçavam arrombar a porta voltaram a ecoar por toda a casa. - Catarina, depressa... o alçapão... mete-te lá dentro... esconde-te! - ordenou, baixinho, Sancho Viegas, adivinhando que a insistente violência das pancadas nada teria a ver com as escaramuças dessa tarde. Levantando-se com algum esforço, Sancho, envolto em ligaduras, deixava transparecer o estado de fragilidade em que se encontrava. Teve ainda tempo de pegar numa adaga, na vã tentativa de defender a sua família, quando quatro forasteiros, envergando capuchos brancos que lhes escondiam os rostos e um manto que lhes cobria todo o corpo, invadiram a casa, tal era a violência dos seus actos. Dois deles agarraram Carmen pelos braços, deixando-lhe pouca manobra para se defender.
Ainda tentou usar a forquilha que segurava na mão, mas esta escapara-lhe com a pancada seca que os homens lhe deram na nuca e que quase a fez perder os sentidos. - O que quereis de nós?... É a mim que procurais? Largai-a! - Sancho, apesar da fraqueza, não se deixava vencer pela derrota. - Onde está a rapariga? - perguntaram os atacantes. - Diz-nos! Onde está a rapariga? - Nunca!... nunca vos direi! Largai essa mulher se sois homens! Levai-me a mim! Deixai-a ir em paz e tomai-me a mim! – Sancho Viegas continuava a lutar. - Onde guardais a chave dos mistérios? - insistiam os agressores.
Carmen recuperava agora as forças. Apesar de cambaleante, foi arrastada pelos homens até, à mesa, derrubando, com o movimento do seu corpo, as tinas que continham os unguentos e as compressas usadas momentos antes para aliviar as dores de Sancho. - Não... não... Largai-me! - Carmen tentava defender-se sem efeito. Os homens levavam a melhor. Catarina, escondida dentro do compartimento que ficava por baixo da casa ouvia, aterrorizada, os gritos de seus pais. Uma nesga de luz entrava pelas frinchas da madeira do soalho por onde podia espreitar e deixava-a ver os homens que violentamente desrespeitavam a sua mãe e maltratavam o seu pai. Conteve a custo um gemido de sofrimento, limpando as lágrimas que lhe escorriam pela face abaixo. Viu a mãe ser brutalmente espancada e violada e por fim, os braços inertes e o rosto inexpressivo, acusavam um corpo já sem vida.
 - Mãe… balbuciou, contendo o pranto. Seu pai, sem forças, dominado por aqueles homens que o obrigavam a ajoelhar, chamava em vão por Carmen. - Procuramos a chave... diz-nos onde está! - Qual chave? Não sei do que falais... - replicava Sancho. - Não zombeis de nós... a chave que trouxestes do Egipto... sabeis bem a que chave me refiro! - insistiram os forasteiros, mostrando saber bem o que procuravam. - Não sei ao que vos referis... largai-me! - Sancho mantinha-se firme. - Diz-nos onde está a rapariga! Não pode andar longe. Diz-nos onde está! - insistiram os homens de capuz, ameaçando-o com uma espada. - Nunca vos direi onde ela está! Nunca... ouvistes bem? Nunca! - disse Sancho Viegas, vencendo todas as debilidades e continuando a lutar. Tinha sangrado muito... a fraqueza apoderava-se dele... e o físico de um homem de quarenta anos, naquelas condições, pouco podia perante os quatro forasteiros.
O olhar de Catarina cruzou-se, por breves e últimos instantes, com o de seu pai, subjugado e em sofrimento, e a impotência perante tal situação provocou-lhe uma angústia que guardaria até à morte. Contudo, tamanho sacrifício não poderia ser em vão. Os pais davam a vida pela sua segurança e, mesmo sem compreender o que se estava a passar, o seu dever era pôr-se a salvo. Nada mais podia fazer por aquelas duas almas que eram a razão da sua existência. Em surdina, Catarina soluçava compulsivamente. Limpou mais uma vez os olhos lacrimosos, acenando um último adeus ao pai. A sua tristeza era profunda e ainda não digerira todas as imagens que se gravavam na sua mente. As palavras daqueles homens ecoavam na sua cabeça... era atrás dela que andavam... mas porquê? Que poderiam querer de uma simples rapariga como ela? Falavam de uma chave... que chave seria essa? Não compreendia! O medo tornara-se aterrador ao perceber que os dois homens haviam assassinado o seu pai. Ouvira os seus passos em direcção à porta e, de repente, tudo ficara silencioso».

In Maria João Martins Pardal e Ezequiel Passos Marinho, A Comenda Secreta, Ésquilo, Lisboa, 2005, ISBN 972-8605-58-7.

Cortesia de Ésquilo/JDACT