terça-feira, 23 de julho de 2013

Teatro. O Graal. Luís Figueiredo Tomé. «É o ‘underground’ de cada um de nós. O nosso lado racional e o emocional em conflito no fundo da nossa mente. Ou, se preferem, a personificação das nossas sombras e das nossas estátuas nesta constante procura de uma porta aberta que não é outra senão nós mesmos»

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«O enredo do teatro é, não a acção nem a progressão e consequência da acção, mas, mais abrangentemente, a revelação das almas através das palavras trocadas e a criação de situações». In Fernando Pessoa

«Ergue-te e fita-me, de amigo a amiga: mostra-me o encanto dentro dos teus olhos». In Safo, século VI a.C.

Nota Introdutória
Através de uma linguagem poética e metafórica o texto ilustra um sonho e o acordar do mesmo, de alguém que somos todos nós. Este drama pretende ser um despertar incomodativo dando uma outra visão do nosso inconsciente. Aspectos que nós conhecemos mas que por vezes preferimos ignorar. É o underground de cada um de nós. O nosso lado racional e o emocional em conflito no fundo da nossa mente. Ou, se preferem, a personificação das nossas sombras e das nossas estátuas nesta constante procura de uma porta aberta que não é outra senão nós mesmos. Pretende assim espelhar o tédio, a solidão, o medo, a liberdade e a raiva que cada um de nós tem recalcado dentro de si na lei onde não importa o caminho, a forma, a arte ou a ciência para atingir um determinado fim. Que, aqui, culmina num grito e num desabafo. Será também um ritual, um espectáculo às cores por criar! In Agosto de 1982.

1.º Acto
Escuridão completa. Surge um foco de luz sobre o palco, passando a ver-se o espaço cénico na sua totalidade. Neste encontram-se quatro estátuas masculinas e um pouco mais perto da boca de cena uma taça representando o Graal. O chão é enxadrezado em branco e preto. Por detrás das estátuas há uma parede em plástico translúcido, onde estão projectadas as sombras destas. Ainda através da mesma parede, se distingue a silhueta de uma cama (tipo romana), onde se encontra um homem a dormir. É precisamente um sonho tido por este elemento o que se vai desenrolar em cena durante os dois primeiros actos, sendo o terceiro o acordar desse mesmo sonho. Assim, na 1.ª parte do 1.º Acto, as sombras deixam de estar presas às estátuas começando a dar corpo à peça (atrás da parede translúcida como sombras chinesas). Pois embora sejam as estátuas que simbolizem as facetas deste personagem (o Homem), são as sombras destas que falam e se movimentam em cena. As sombras (actores), estão vestidas com maillots, vermelhos e pretos.

1.ª Parte, toda em sombra chinesa. Passado - Água
Ao som de música surge um grupo de bailarinos, que durante alguns minutos executam uma dança, a qual apoia a ideia de que se está a dar início ao desenrolar de um sonho.

Político
À espera da barca da noite
sombras rodeavam-me.
Era o meu eco. O meu eco.
Aquela espera... só.
Tinha estado no gelo
com meus olhos fechados.
As palavras sabiam-me a lodo.
(pausa)
Aqui fico a mentir,
esperando não sei bem o quê.

Filósofo
Desejei-me com alibis.
Não havia sinal de nada.
As vozes tinham um som diferente.
Vocês aí, estão a ouvir-me?
Ninguém responde.
Os dias acabavam num perpétuo banquete branco.
(pausa)
A minha face no espelho, mostra-me o tempo perdido.
Há alguém aí fora? Há?
Se as marés me bebessem ao encontro das fronteiras.
As palavras estão a cair pelas grutas.
Não quero morrer entalado.

Poeta
Os sonhos tomaram-se pensamentos.
Saí ao encontro da luz.
Tentava encontrar o dia
mas tudo se encandeava.
(pausa)
Havia lugares na cidade onde se estava bem.
Mas a saliva do campo!
Digam-me, quando a fama estala no chão,
vira-se contra nós?
Digam-me das pontes que vergaram,
correram dos rios em direcção ao mar?
Habitei muito longe de mim,
não me posso aqui deixar.
Tenho de aprender os sons do mundo
trauteando a sua melodia.
São sempre outras palavras.
Ruídos diferentes.

Sábio
Foram séculos que palpitaram sobre esta fonte.
Reconstruí nascentes que correrão até aqui.
Amanhã?!
Hão-de chegar para que sinta a minha pele
lambida pela Lua que ergui.
Lua que ergui! Eu!
Que dentro da espiral do tempo,
me parti como uma boneca de porcelana…
estas visões detêm-me.
… pelo menos mais um dia.

Filósofo
O suicídio é como um espelho na alma.
Ao nos mirarmos nele,
fazemo-lo com tanta força que nos quebramos.

Poeta
É quando a nossa pele se rasga
ao longo da escadaria,
que tanto queríamos
que fosse só nossa.
(pausa)
A forma como te movias,
não sei explicar.
[…]

In Luís Figueiredo Tomé, Teatro, O Graal, Colecção Barca Nova, Ulmeiro, Lisboa, 1983.

Cortesia de Ulmeiro/JDACT