O Príncipe João. Educação e Ambiente. A Corte
«(…) Este segundo casamento de Afonso V marca o início da guerra com
Castela] de Afonso V se deu em Maio de 1447,
quando em Santarém tomou sua casa e
sua molher juntamente, com as bençoões e cerimonyas, pella Santa Ygreja em taes
casos ordenadas, e com alguma mostrança de feestas, mas nom foram naquella
perfeyçam e comprymento que o Yfante quysera e tinha ordenado. Porque como
deixou o Regimento, logo todallas cousas aynda que fosse sem culpa sua pera seu
desfavor lhe volveram as costas.
Vários anos de espera tornaram, pois, este sucessor vivamente desejado.
Fica, contudo, a interrogação se este desejo seria comum a todos os sectores da
corte. Na realidade quando falamos nas influências recebidas pelo príncipe João
ao longo da sua infância e adolescência, não devemos esquecer as circunstâncias
pré-natais que caracterizaram o ambiente de corte. Nessa conjuntura, parece
importante destacar dois aspectos que se nos afiguram de singular importância;
para tanto servimo-nos das palavras de Rui de Pina:
- Estando assy estes senhores em Tomar, esperando o tempo do saymento e cortes, foram ally juntos quasi todollas pessoas pryncipaaes do Reyno, com esperança e certidam de futuras mudanças (..) e o Yfante D. Pedro prepôs logo prymeiro dizendo: Senhor lrmaaõ, e honnados Senhores, e Fydalgos, que aquy estaaes, bem vedes que a nova ydade d'ElR, nosso Senhor, assy nelle, como nos outros menynos, he sojeita ha muytos casos e desastres, de que Deos Nosso Senhor ho guarde e defenda. E porque daquy atée que sua Mercee tenha ydade e desposyçam pera casar, e haver Fylhos, se passará bom espaço de tempo; meo voto he (...) que o Senhor Yfante Dom Femando, seu lrmaaõ, seja logo aquy yntitullado, e jurado por Pryncepe, e seu Erdeiro (...) Acabou o Yfante sua proporyçam, em que nam foram necessarias mays rezooens pera suas synas, pera se louvar, e aver por justa e bõa sua tençam. Polo qual os Yfantes, e o conde de Barcelos, e os outros Senhores, que eram presentes, por sy e por todollos do Reyno, logo fezeram desto hum Auto sollenizado per juramento, perante notairos pubrycos, em comprymento do qual, ho Yfante Dom Fernando se chamou, e yntytulou por Pryncepe, atée que ElRey ouve Fllho;
- O consentimento e prazer da Raynha, acerca deste casamento, nam foy ygualmente recebido nos coraçooens de todos, os que ally eram: ca uns o aprovavam com prazer e sem paixam, e outros com tristeza, odio, ynveja e cobiça, o nom podiam padecer. E antre alguns destes, que hiavia, o pryncipal, diziam, que era o conde de Barcelos, a quem parecia, que da conclusam e outorga deste casamento pesava muyto.
Estamos perante dois aspectos de relevante importância: o facto de
Fernando ter sido jurado herdeiro do reino e o casamento, contra vontade de
alguns senhores, de Afonso com a filha de Pedro que claramente representava a facção
oposta ao duque de Barcelos e seus sequazes. Consumado o indesejado casamento
do jovem rei com a filha do duque de Coimbra, contrariamente, como ficou dito,
à vontade do conde de Barcelos, facilmente se geraria no grupo liderado pelo conde
o desejo de ver Afonso V sem filho varão; desse modo e considerando a
fragilidade de D. Joana, seria claro que a sucessão do reino recairia em Fernando,
que antes fora jurado; para o conde de Barcelos e seus sequazes esta hipótese
seria bem mais agradável do que a de ver-a coroa de Portugal cingida por um
directo descendente do seu maior inimigo, o regente Pedro. Torna-se assim
pertinente a hipótese de que nem todos na corte desejariam, ao longo destes 8
anos, com igual ansiedade, o príncipe herdeiro. É certo que a princesa D. Joana
tinha sido jurada, mas o facto da sucessão recair numa mulher colocaria
problemas que sem dificuldade levariam à vitória de Fernando.
NOTA: A infanta D. Joanna, filha de Affonso V, foi jurada
sucessora da coroa antes do nascimento do príncipe João, o que prova também que
era doutrina recebida poderem reinar as mulheres, afirma Gama Barros; contudo, a
sucessão por via feminina só acontecia se estivesse esgotada a via masculina;
nestas circunstâncias não seria difícil afastar do trono a princesa jurada em favor
de Fernando. A propósito do desentendimento entre o Regente e o então conde de
Ourém, motivado pelo facto de Pedro ter dado o cargo de Condestável do Reino a
seu póprio filho e não a ele, que se considerava o sucessor de direito no
cargo, por ser neto de Nuno Álvares Pereira, o conde ficou tão ofendido e tamanho descontentamento e agravo mostrou
que do Yfante por ysso recebia, que nunca despois quis mais vir à sua casa, e menos
aa Corte d'ElRey em quanto elle regeo, e este odio do conde d'Ourem foy a causa
pryncipal da morte, e destruiyçam do Yfante Dom Pedro, como se diraa.
Retomando a narrativa de Rui de Pina verifica-se que a facção
oposta ao regente e ao seu governo se tornou cada vez mais forte. Utilizando a
síntese de Orlando Ribeiro dividiremos em quatro as fases de regência:
- Primeira fase: Luta pelo exercício da regência entre a rainha D. Leonor de Aragão e o Infanie Pedro, Setembro de 1438 a Dezembro de 1439;
- Segunda fase: Desde que Pedro, eleito nas Cortes de Lisboa, começa a exercer sózinho o poder, até à retirada da rainha para Castela, Dezembro de 1439 a Dezembro de 1440;
- Terceira fase: Regência incontestada de Pedro até que o rei atinge a maior idade, Dezembro de 1440 a Janeiro de 1446;
- Quarta fase: O infante continua a exercer o governo, por incumbência do moço-rei, até que este lhe retira o mandato, Janeiro de 1446 a princípios de 1448.
Ora se afirmámos já que o príncipe João sofreu, na formação da sua
personalidade, as consequentes influências de uma corte dividida, não podemos
esquecer que seu pai, Afonso V, fora igualmente vítima de um ambiente de
tensão; pode dizer-se que cresceu também sempre sujeito a influências contraditórias,
conhecendo o frio como uma constante entre os seus parentes mais próximos. A
síntese que acabámos de transcrever traduz bem o clima de tensões políticas, que
cresceram desde a morte do rei Duarte, quando o seu herdeiro tinha apenas sete
anos de idade, até ao momento em que este, influenciado pelas forças hostis ao
Regente Pedro, lhe retirou o mandato de governo».
In Manuela Mendonça, D. João II, Um Percurso Humano e Político nas
Origens da Modernidade em Portugal, Imprensa Universitária 87, Editorial
Estampa, Lisboa, 1991, ISBN 972-33-0789-8.
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