O rei e o reino
«(…) Por certo que ao chegar a Portugal Mafalda de Sabóia haveria
de ouvir falar da recente razia de Soure (1144), ali bem perto da Coimbra que
seu marido tinha escolhido para local de seu paço e onde decorriam obras em que
punha tantas esperanças e cabedais, como o Mosteiro de Santa Cruz e a catedral.
Do mesmo modo, não lhe ficaria desconhecida a sorte de Martinho, presbítero de
Soure, levado em cativeiro para Córdova, onde acabaria por falecer. Nos
comentários e reflexões que ouviria acerca da sorte das terras e das armas
cristãs e das estratégias a adoptar, tomaria consciência de que o destino de Soure
não era caso único. Um outro, o de Leiria, também por essas paragens a sul de
Coimbra, seria, temo-lo por certo, alvo das preocupações dos fiéis da corte,
fossem guerreiros ou não. Afinal, sempre estava em causa a vida e a obra de
gentes cristãs e, o que talvez não fosse de somenos, a segurança de um território,
na rectaguarda, que havia que defender a todo o custo. Mafalda tomaria
conhecimento da estratégia que representava a concessão de cartas de foral, tão
recente ela era ainda no caso de Leiria (1142).
Não lhe passaria despercebida a atenção de seu marido relativamente aos
Templários e ao papel que eles representavam para essa mesma estratégia relativamente
à segurança do território. E, por último, estamos em crer que nem os problemas
que Santarém e Lisboa, ainda em poder muçulmano, representavam para o jovem
reino de Portugal lhe seriam estranhos. Não tinha sido, afinal, o seu casamento
fruto também de amplas conversações onde, por certo, esses problemas teriam
estado também presentes?
O casamento do primeiro rei de Portugal
Afonso Henriques era um homem bem maduro quando, a seu lado, nos seus
documentos, nos surge a referência a sua mulher, D. Mafalda. E ia já, longo o
seu governo à frente dos destinos da terra de Portugal. De 24 de Junho de 1128, data
da Batalha de São Mamede, a 23 de Maio de 1146, data do primeiro
documento que nos testemunha o novo estado civil do rei de Portugal, passavam
dezoito longos anos, repletos de acontecimentos significativos para a afirmação
do rei dos Portugueses e da terra de Portugal. Não temos forma de saber a razão
do adiamento do casamento do primeiro rei de Portugal. Mas não resta dúvida de
que, para a época e os seus costumes, a sua idade era já avançada para tal
acontecimento. No entanto, sempre poderemos questionar o alcance da notícia que
nos chegou transmitida pelo Livro velho de linhagens, de finais
do século XIII, segundo a qual o rei Afonso [Henriques] de Portugal teve um
filho, Fernando Afonso, com D. Châmoa Gomes, de Pombeiro, viúva e, ao
que é dito, sendo monja do mosteiro de Vairão. Châmoa Gomes era membro
da mais relevante nobreza galaico-portucalense, pois sua mãe era filha do conde
Gomes Nunes, dito de Pombeiro, nos
livros de linhagens, e da condessa Elvira Peres, filha do conde Pedro Froilaz,
aio do imperador Afonso VII. Não foi o único filho de tal senhora, pois que os
teve de seu marido, Paio Soares, da Maia, nem, muito menos, o único em drudaria, isto é, em situação
irregular. O nascimento de Fernando Afonso, o fruto desta ligação do
rei de Portugal, deve poder situar-se pela década de 1130, pois que ele subscreve documentação de seu pai desde 1159 e viria a ser seu alferes entre 1169 e 1172. Mas não se vislumbra o tipo de relação que o rei manteve com Châmoa
Gomes: acidental? Efémera?
Ou, bem pelo contrário, seria
coisa firme, significativa? Nesta última hipótese, por que razão
terminou (se terminou...) ou, pelo
menos, não se tornou oficial? Alguém teria desviado Afonso Henriques desses amores? Significará
porventura tal afastamento um sinal de forças nobiliárquicas diferentes (senão
antagónicas) ao lado do rei de
Portugal? Neste cenário, não pode deixar de se ter presente todo o
percurso de vida do pai de Châmoa Gomes, ora ao lado de forças da Galiza
ou de Castela, ora de Portugal; talvez, esta instabilidade (no mínimo...) não fosse bem vista por aqueles que mais permanentemente
se mantiveram fiéis a Afonso Henriques. Ou, muito simplesmente, tudo terminou
porque Châmoa Gomes faleceu?
Por uma outra via, analisando o círculo próximo de Afonso Henriques, deve
assinalar-se que Pedro Pais, da Maia, conhecido por o alferes, precisamente por o ter sido ao serviço do primeiro rei
de Portugal, desde o final do ano de 1147,
e até ao recontro de Badajoz, em 1169,
era um
dos dois filhos legítimos conhecidos de Châmoa Gomes. Se é certo que a
prosápia do pai, da família da Maia, era bastante para justificar este cargo,
não deixa de ser interessante notar a filiação materna deste oficial de Afonso
Henriques, bem como o tempo em que entrou ao seu serviço. Contudo, mais que
elementos comuns, sublinhe-se, em conclusão, que, na matéria desta ligação do
rei de Portugal, se avolumam muito mais as questões a que não sabemos responder
pese embora o interesse de algumas delas.
Regressados ao tema do casamento tardio do rei de Portugal, não se questiona
também a necessidade de um herdeiro para o rei de Portugal; todas as monarquias
o exigiam e a portuguesa, então nascente, não era excepção. É certo que essa
autonomia era uma incógnita em si mesma; nascida de um acto de rebeldia,
interna e externa, exigia-se-lhe em primeiro lugar que se afirmasse, para assim
se viabilizar; só depois haveria mister de se prolongar no tempo, através de um
herdeiro».
In As Primeiras Rainhas, Maria Alegria Fernandes Marques, Mafalda de Mouriana,
1133?-1158, Círculo de Leitores, 2012, ISBN 978-972-42-4703-8.
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