A Situação de Portugal após a Morte do Cardeal-rei
«(…) A primeira preocupação dos Governadores, que não desconheciam as
suspeitas de que eram alvos, foi captarem as simpatias do braço popular.
Apresrsaram-se, por isso, a escrever a todas as cidades e vilas, representadas
nessas cortes, a recomrendarem-lhes concórdia e a prometerem que não só
cumpririam rigorosamente as leis, mas também se comportariam com toda a imparcialidade
na causa da sucessão ao trono. Afivelaram a máscara da austeridade. E, para
incutirem mais confiança nos delegados do povo, enviaram-lhes um homem insuspeito
de parcialidade castelhana, o padre jesuíta Martim Gonçalves Câmara, que
fora ministro do rei Sebastião, com a missão de lhes garantir, de viva voz e em
nome dos regentes, que atenderiam à sua pretensão de nomearem sucessor à coroa,
como fosse de justiça, e lhes facultariam as escritutras e mais documentos que
requisitassem dos arquivors.
Apesar de lhes manifestarem tão bons propósitos, os procuradores dos
concelhos mostraram-se desconfiados. Respondendo ao mensageiro e falando em nome
de todos, Febo Moniz discursou com veemência, formulando algumas
acusações contra os Governadores e aconselhando os procuradores a nomearem
outros regentes. Martim Gonçalves, na sua boa-fé e supondo falar em nome
de homens honestos, ponderou à assembleia o perigo de se nomearem outros
governadores em momento tão melindroso. Os delegados estariam semple a tempo de
os substituir, se as murmurações contra eles persistissem de futuro. Febo
Moniz replicou, ponderando, e muito bem, que em breve os procuradores se
dispersariam, regressando cada um a suas terras distantes, e que se perderia a
facilidade e a oportunidade de proceder àquela substituição que as próprias
circunstâncias tornavam urgente. E a assembleia deu mostras de inteiro acordo
com as palavras de Febo Moniz, que era o seu presidente. Estava, porém,
reservada a este homem de carácter uma ruim surpresa. Na sessão imediata, passada
a momentânea exaltação, decidiram os procuradores seguir prudentemente a
opinião do padre Martim Gonçalves, isto é, evitar o escândalo de nomear
novos regentes, sem que houvesse motivo plausível para os desfeitear nesse momento.
E, asisim, por excesso de prudência, perderam as classes populares a
oportunidade única de mudar o rumo à história.
Não tardaria muito tempo que aqueles a quem não quiseram ofender os
traíssem e vendessem ao monarca estrangeiro, cujos interesses já vinham defendendo
habilmente na sombra. Contudo, ainda os procuradores tomaram uma decisão
puramente platónica, na ingénua persuasão de que intimidavam os Governadores, se
acaso estes dissimulavam pérfidas intenções. Redigiram um papel, admoestando-os asperamente
e aconselhando-os a tomarem as seguintes providências:
- Que os Governadores trocassem a sua residência de Almeirim pela de Santarém, onde as Cortes se reuniam, para estarem mais próximas delas;
- Que licenciassem os soldados de que se tinham rodeado, porque estavam fazendo com eles gastos que seriam mais aproiveitáveis quando fosse necessário defender a pátria contra os estrangeiros;
- Que se tomsssem providências eficazes para a defesa do país;
- Que se enviasse uma embaixada ao papa, a fim de lhe rogar que pedisse a Filipe II que não tentasse resolver pelas armas a contenda;
- Que se punissem os aliciadores que andassem a trabalhar em prol de qualquer pretendente;
- Que fossem exonerados os indivíduos a que o cardeal dera empregos nos últimos tempos, desde que se voltara definitivamente para Castela, empregos que bem se viu serem recompensa do seu afecto pelo estrangeiro;
- Que se enviassem embaixadores a Filipe II, para se lhe assegurar que se guardaria justiça inteira aos diversos pretendentes.
Verificando que não os desalojavam dos seus lugares, os Governadores suspiraram
de alívio. Rude golpe para a política de Castela seria a sua substituição por
homens enérgicos e íntegros, como Febo Moniz preconizava. Mantendo-se,
porém, ocultos dentro da cidadela que em breve seria assaltada, poderiam os
traidores continuar, e continuaram, realmmte, a prestar inestimáveis serviços
ao seu amo secreto. Não há dúvida de que os procuradores dos concelhos perderam
uma grande cartada. Tiveram um valioso trunfo na mão e deixaram-no escapar-se
entre os dedos».
In Mário Domingues, O Prior do Crato Contra Filipe II, Evocação
Histórica, edição da L. Romano Torres, Lisboa, 1965.
Cortesia de Romano Torres/JDACT