A Situação de Portugal após a Morte do Cardeal-rei
«(…) Às censuras e recomendações que as Cortes lhes enviaram,
responderam os Governadores com o seguinte articulado:
- Que brevemente sairiam de Almeirim, sem contudo designarem a cidade ou vila onde iriam residir;
- Que lhes ficaria mal despedirem as tropas chamadas pelo cardeal-rei Hennque para guarda da sua corte;
- Que já haviam ordenado que os alcaides e capitães das praças se recolhessem a elas, sob pena de as perderem, e que providenciariam para que se continuasse na reparação das fortalezas que guarneceriam a entrada da barra de Lisboa e das margens do Tejo;
- Que lhes parecia inútil mandarem embaixadores a Roma enquanto Filiupe II não desse demonstrações de hostilidade. Toda a gente sabia que ele acumulava tropas nas fronteiras portuguesas;
- Que procederiam com todo o vigor das leis contra quem fosse convencido do crime de suborno ou corrupção;
- Finalmente, que em breve partiriam para Madrid o bispo de Coimbra e Manuel Melo.
Nem sequer se dignaram responder ao artigo que os aconselhava a
exonerar dos seus cargos todos os traidores partidários de Castela. Para lhe
obedecer, teriam de principiar por pedir a demissão, pelo menos, três dos cinco
membros da regência: João Mascarenhas, Francisco Sá e Diogo Lopes Sousa.
As Cortes reduzidas ao silêncio e à inoperância
Ao ter conhecimento da morte de seu tio, cardeal-rei Henrique, partiu António, prior do Crato, a toda a
brida, de Almeirim, onde já andava sem resguardo, apesar de haver ordem de o
prenderem, para Lisboa. Acompanhava-o um reduzido rancho de partidários. Talvez
sua intenção fosse provocar um levantarnento popular em seu favor, ao que não
se atreveu, certamente por não ter encontrado os apoios que se lhe afiguravam
indispensáveis. Não entrou a ocultas na capital, como algumas vezes sucedera,
depois de o monarca ora falecido ter mandado publicar os éditos da sua
desnaturalização, que o privaram de todos os direitos cívicos, de todos os bens
e rendas, e ordenavam que o tratassem como estrangeiro indesejável. Deteve-se
na quinta de Diogo Botelho, ao campo da Forca. Aí mandou chamar algumas pessoas
principais, a quem comunicou a sua decisão de ir instalar-se no Paço da
Ribeira, que era residência de reis. O golpe era bem concebido, mas António não contara com a oposição dos
dissimulados partidários de Castela, nem com a inércia e timidez dos patriotas.
À Câmara de Lisboa depressa chegou notícia dos intentos do Prior do Crato.
E talvez a maioria dos senadores e procuradores que a compunham a acolhesse com
simpatia e gostasse de o ajudar. Mas também aquele reduto nacional se encontrava
minado pela corrupção castelhana. Quem dominava esta instituição era Fernão Pina
Marrecos, que os embaixadores espanhóis, e principalmente o licenciado Rodrigo
Vásquez Acre, já tinham subornado. Correu ele a procurar Pedro Cunha,
capitão-mor das Ordenanças, que já tinha reunido as companhias, e suplicou-lhe
que aconselhassre António a desistir
do seu intento, para não se ver obrigado a executar a ordem de prisão que sobre
ele impendia. Assim, conseguiu o traidor evitar que se criasse uma situação
parecida com a de dois séculos antes, em que o Mestre de Avis, delirantemenüe
aclamado pelo povo lisboeta, foi nomeado pela Câmatra de Lisboa regente e
defensor do reino.
Perante esta oposição, o Prior do Crato evitou entrar em Lisboa. Foi
pernoitar no mosteiro de Belém, de onde escreveu para Almeirim, à Junta dos procuradores
do povo, a oferecer os seus serviços naquele melindroso período, declarando
estar na disposição de ocupar qualquer posto, mesmo o mais humilde, na defesa
do reino, que as Cortes lhe designassem. Acrescentava ainda que resolvera colocar-se
sob a sua protecção e que iria alojar-se no local que lhe indicassem. Como lhe
respondessem que Santarém o receberia, partiu António de novo para aquela vila ribatejana, aboletando-se no próprio
convento de São Francisco, onde decorriam as sessões do braço popular».
In Mário Domingues, O Prior do Crato Contra Filipe II, Evocação
Histórica, edição da L. Romano Torres, Lisboa, 1965.