As intervenções francesas no espaço ibérico ao longo do século XI
«(…) Pouco depois de ter regressado aos seus domínios, o duque Hugo I
abdicaria do título ducal, que detinha desde 1076, e professaria na abadia de Cluny, governada pelo seu
influente tio-avô, o abade Hugo, o Grande (1049-1109). A escolha de
fé do duque Hugo não deixou de causar alguma preocupação em Roma, sendo célebre
a epístola que o papa Gregório VII (1073-1085) enviou ao abade Hugo, a 2
de Janeiro de 1080, criticando-o
abertamente por este ter provocado ou aceite o voto do sobrinho, deixando cem mil cristãos sem protector. Mas de
nada valeram as preocupações do papa. Hugo de Borgonha professou mesmo na
abadia de Cluny, onde viveu recolhido durante catorze anos, vindo a falecer em 1093, com apenas 37 anos de idade. Em 1078
ou 1079 temos notícia de uma nova (e algo obscura) expedição franca,
desta feita organizada pelo conde Hugo II de Chalon-sur-Saône, filho do conde
Thibaut de Semur e seu sucessor no título condal. O seu pai, participara na
grande incursão de 1063-1064 ao lado do duque Guilherme VIII da Aquitânia, que culminara
com o cerco e a conquista de Barbastro, tendo falecido em 1065 em Tolosa, quando
os exércitos cristãos vitoriosos se retiravam. O filho planeou uma expedição,
cujos preparativos já estavam a decorrer em 1078 e 1079, altura em que, para
reunir o montante necessário, vendeu vários direitos senhoriais na zona de
Chalon-sur-Saône aos monges de Cluny. A expedição teve lugar em fins de 1079 ou inícios de 1080, mas o conde Hugo II não teve melhor sorte que seu pai, tendo
falecido num recontro militar cujo nome se ignora. A única referência ao seu
trágico destino encontra-se no processo de eleição de Walter para bispo de Chalon,
em 1080, onde se alude à sua recente morte.
Hugo II de Chalon-sur-Saône era casado com Constança de Borgonha, filha
do duque Roberto I, o Velho e
portanto irmã de Henrique de Borgonha e sobrinha-neta do abade de Cluny,
Hugo, o Grande. Pouco depois de enviuvar,
Constança de Borgonha acabaria por casar, em 1080, com Afonso VI de Leão e Castela (1065-1109), o que ajudou
a consolidar os laços entre a casa ducal e a Península Ibérica e incentivou,
certamente, a realização de novas expedições militares borgonhesas.
Com a retirada de Hugo I de Borgonha para avida monástica, em 1079, o título ducal ficou entregue ao
seu irmão Eudes I (ou Eudes Borel), que o manteve até à sua morte,
ocorrida em 1103. Nove anos depois da expedição de seu irmão e oito anos depois
de ter assumido os destinos da linhagem, Eudes I promoveu uma nova expedição
borgonhesa à Península, que teve lugar em 1086-1087. A sua organização contou
com o apoio explícito do abade de Cluny, Hugo, traduzido num apelo em que este
exortou os cavaleiros cristãos a integrarem o projecto de seu sobrinho-neto.
Nela participaram, para além do próprio duque Eudes I, os seus irmãos Roberto,
então já investido como bispo de Langres e Henrique de Borgonha, o mais
jovem dos sete filhos de Henrique de Borgonha, que contaria, então, cerca de 18
anos de idade, bem como o seu tio Roberto de Borgonha (filho do duque Roberto
I, o Velho, e, portanto, irmão ou
meio-irmão da rainha Constança e de Henrique de Borgonha). Na mesma expedição
participou igualmente um primo dos três primeiros, Raimundo de Borgonha, conde
de Amous (filho de Guilherme I, o Grande,
conde de Borgonha). E compareceram, naturalmente, muitos outros nobres, entre
os quais Raimundo de Saint-Gilles, conde de Toulouse, e Savary de Donzy, mais tarde
conde de Chalon-sur-Saône. Penetrando no espaço ibérico, o exército franco dirigiu-se
para o reino de Saragoça. A conquista de Tudela, ao cabo de um prolongado
cerco, foi o acontecimento mais memorável desta poderosa expedição. Os
cavaleiros francos tiveram de defrontar Rodrigo Díaz de Bivar, El Cid, que então se tinha aliado às
forças muçulmanas da taifa de Saragoça. Um documento outorgado na corte leonesa
refere-se ao magno exercitu
reunido pelos nobres franceses que tinha trabalhado no cerco de Tudela quid fecerunt et quantum laboraverunt in
obsidione Tudele.
Foi provavelmente na sequência desta expedição que D. Constança de Borgonha,
rainha de Leão e Castela e tia de Eudes, Henrique e Roberto, convidou Raimundo
e Henrique de Borgonha a permanecerem na Península. O certo é que, em 5 de Agosto
de 1087, o duque de Borgonha, Eudes
I Borel, ainda se encontrava entre nós, tendo sido recebido por Afonso VI de
Leão e Castela e pela rainha D. Constança, em Leão, onde confirmou uma doação
feita pela sua tia aos monges de Tournus em memória de seu primeiro marido, o
conde Hugo II de Chalon-sur-Saône. Na esteira dos sucessos militares desta expedição
foram acordados üês casamenros que selaram as relações entre a família real
castelhano-leonesa e três grandes casas senhoriais
francesas: - Raimundo, conde de Amous, da linhagem dos condes de
Borgonha, casou com Urraca, filha legítima dos reis Afonso VI de Leão e Castela
e Constança de Borgonha; - Henrique, da linhagem dos duques de Borgonha, casou
com Teresa, filha natural de Afonso VI de Leão e Castela e de Ximena Moniz; -
Raimundo de Saint-Gilles, conde de Toulouse, casou com Elvira, filha natural de
Afonso VI de Leão e Castela e de Ximena Moniz (e, portanto, irmã de Teresa). Os
três nobres franceses
tornaram-se, assim, cunhados e ficaram umbilicalmente ligados à Coroa de Leão e
Castela. Poucas expedições militares tiveram tão profundas consequências no
devir político da Península...»
In Luís Amaral, Mário Barroca, A Condessa-rainha, Teresa, coordenação
de Ana Maria Rodrigues e Outras, Círculo de Leitores, 2012, ISBN
978-972-42-4702-1.
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