«(…) É uma herança da esquerda europeia sempre que não ocupou ou foi
poder, é uma ideia de cultura enquanto humanista
como instância nobre, reguladora, espaço idealizado de aventura humana que na
sua realidade mais trivial é atroz e sem cura. Mas não é sob esta figura de
cultura, enquanto expressão de uma racionalidade
que por si mesma seria factor de equilíbrio,
de ordem, de justiça, etc. que o combate pelo Socialismo pode hoje ser travado
quando o liberalismo como cultura tem a audácia de convocar a mais alta tradição
crítica do Ocidente para a ajudar a vender os seus produtos, tal como
domesticou a prática subversiva da arte moderna assimilando-a a títulos da
bolsa mais rendosos e mais e mais nobres do que eles. Mercedes-Benz, parece que
nem precisaria, mas é um facto, convoca as sombras de Leibniz- de Espinosa ou
de Descartes para sobrevender os seus aliás maravilhosos produtos, que eu não
me posso pagar com luxos de socialista do possível, como a imprensa que ecoa
essa euforia liberal se autoproclama inteligente
como Einstein, e do seu ponto de vista, tirando a pretensão, talvez o seja. O
que é possível fazer para preparar um futuro
socialista neste instante em que um mensário intitulado Liberal confessa extático e feliz que, para as nossas gerações
realistas, filhos do seu tempo, Wall Street
substitui Katmandu? Os novos lemas são: ganhar, avançar, ser o
actor de uma performance como afirmação
da plenitude de si, indiferente a qualquer transcendência, em uníssono com o produto sofisticado que justifica e
alimenta o fluxo sem suspeita da
produtividade capitalista, enfim liberto dos fantasmas repressores, ascéticos,
herdados de vários séculos de judeo-cristianismo. Mon Désir, diziam reis renascentistas como critério supremo e único
de liberdade que de valor referem e a
cultura de esquerda passou a ser cobertura do liberalismo económico, para quem
a liberdade é de conquistar para si o exclusivo de um mercado. A cultura liberal
reivindica mesmo a antiga subversão,
a revolta situacionista ou de Maio 68 contra a ordem do capitalismo
ocidental, como expressão da liberdade individual de independência de que hoje
devem fazer gala os empreendedores, vendedores, criativos, etc. O mesmo Liberal regozija-se com o nascimento
deste novo espaço de prazer e de liberdade, tão outro que o tempo dos grandes
pânicos dos anos 60 diante do desenvolvimento anárquico da produção, com a
apologia do crescimento zero pelo Clube
de Roma, temor do apocalipse nuclear, etc.
O instante ocidental está
cheio como um ovo do gozo do seu sucesso. Um signo entre outros: em plena agitação
estudantil em França no Outono de 86, uma famosa marca de luxo manteve o seu
congresso em La Villette e anunciava 60 milhões de francos de benefícios. No futuro? O futuro é aqui...
A situação particular nossa, o facto de que, enquanto expressão
política, o projecto socialista em Portugal seja vivido com um optimismo que
embora não seja e não possa ser o de Sérgio, é mais difícil de assumir na restante
Europa, torna menos deprimente esta
euforia ocidental de neoliberalismo. Mas seria de uma cegueira culposa não
perceber que esse neoliberalismo e a cultura que o exprime ou que por sua vez o
justifica no plano da polémica ou da
publicidade, são mais uns dos meus fantasmas de estrangeirado à força.
Para ter futuro, não como mera expressão na ordem política-democrática,
o Socialismo terá como obrigação primeira reinventar um novo discurso cultural, revisitar seriamente o seu imaginário
que ainda o protege aparentemente do fascínio do discurso pseudoliberal. Não é tarefa de eleitos, mas de todos que sabem, sem
ser de ciência certa, que há na ideia e no projecto socialista uma exigência, uma verdade que nem a mais gritante eficácia do ultracapitalismo planetário
consegue ocultar. Debaixo das pedras
da calçada, a praia, diziam os estudantes de 68. Debaixo da
fachada rutilante de uma sociedade que exclui e remete para o nada social uma
fracção inumerável da comunidade humana não descobrimos praia nenhuma, só o
espectáculo de uma sociedade dividida entre a euforia dos conquistadores new look e as suas vítimas, mesmo os que
recebem desse universo rutilante algumas migalhas de sonho que lhes permitem
imaginar que estão ainda dentro do ninho iluminado.
Para os que acham meramente ética esta constatação, não tenho resposta
a dar. O Socialismo ou é ética social em acto ou não é nada. Estou certo de
pouca coisa, mas não duvido de que o futuro para o Socialismo ou se alimenta
dessa convicção, e das consequências práticas que dela relevam, ou se
converterá numa legenda sem leitura e
sem leitores». In Eduardo Lourenço, A Esquerda na Encruzilhada ou Fora da História?,
Ensaios Políticos, Gradiva, 2009, ISBN 978-898-616-310-5.
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