domingo, 21 de julho de 2013

Há dias assim... Marânus. Teixeira de Pascoaes. Prefácio de Eduardo Lourenço. «Melhor do que nunca no poema “A minha musa”, que abre um dos mais ardentes e sumptuosos poemas eróticos da nossa literatura, do erotismo divino dos grandes místicos barrocos…»

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Um só homem possui todo o mundo, a lua enche de luar todo o mar... In Marânus

Prefácio
«(…) Uma criação-dor, nós como seres enraizados na dor e na angústia, precisa de ser redimida, salva. A expressão histórica dessa redenção, Cristo e nós como cristos, está incluída nesse mar originário do sofrimento. Como para Junqueiro, como para Pessoa, que o imitará, Cristo precisa ser despregado da sua cruz, devolvido à sua plena humanidade. Há em Pascoaes, como haverá em Pessoa, uma evidente ressonância do processo feito ao Cristianismo, como culto contra-natura, por Frederico Nietzsche, mas Pascoaes não assimilará Cristo a Dioniso mas a Apolo. Crístico sob o plano cósmico, dolorista, concebendo a criação como crucificação divina, Pascoaes, sob o plano antropológico inverte essa pulsão masoquista e em Marânus convida todos os heróis crísticos, por fuga à vida, como D. Quixote ou o próprio Cristo a aceitar, digamos, nietzscheniamente, a incarnar, a nascer de um ventre de mulher e a conhecer o amor, o amor de tudo sem exclusão, desde o amor da natureza ao amor humano.
Pascoaes como alto espírito e supremo poeta que era, tem plena consciência da dupla face da sua Alma mas em vez de se dilacerar nela como Antero ou de se converter em seu próprio Dioniso, glosou sem fim a sua irredutível e criadora contradição. Melhor do que nunca no poema A minha musa, que abre um dos mais ardentes e sumptuosos poemas eróticos da nossa literatura, do erotismo divino dos grandes místicos barrocos, aquele que começa Aí vem a meia-noite, uma donzela / Senhora minha. Nesse poema como em todos a sua musa é:

Senhora da manhã vitoriosa
e também do crepúsculo vencido,
ó Senhora da noite misteriosa
por quem acordo, nas trevas, confundido.

Perfil de luz! Imagem religiosa!
Ó dor e amor! Ó sol e luar dorido!
Corpo, que é alma escrava e dolorosa,
alma, que é corpo livre e redimido.
Mulher perfeita em sonho e realidade.
Aparição divina da Saudade...
Ó Eva, toda em flor e deslumbrada!

Casamento da lágrima e do riso;
o céu e a terra, o inferno e o paraíso,
beijo rezado e oração beijada.

Desta Divina Saudade, menos entidade metafísica de nebuloso sentido que Eva toda em flor, como esquecer que a Saudade segundo Pascoaes é a quinta-essência do erotismo? Será o poema Marânus a epopeia elegíaca ou o romance metafísico e bucólico, hino incomparável à beleza terrestre confrontada com o tempo e a morte e vencendo-os do interior pela aspiração infinita de que é símbolo para o amante que a contempla, a cria e por ela é criado. Se os primeiros grandes poemas de Pascoaes repercutiam o movimento tumultuoso, a vaga vertiginosa dos poemas de Milton ou orquestravam os grandes mistérios da existência na tonalidade dramática ou mágica de Hugo, Marânus é como uma lírica aventura da alma solitária extasiada diante da Natureza, transtornada pelo Desejo, espécie de Lusíadas sem outro herói que Marânus. Adamastor eternamente rodeado de Eleanor, sua própria alma próxima e inacessível, enleado como Narciso num amor de si mesmo que só não é mortal porque esse amor é o amor do Todo e de Tudo».

In Teixeira de Pascoaes, Marânus, Prefácio de Eduardo Lourenço, Assírio & Alvim, Lisboa, 1990, ISBN 972-37-0261-4.

Cortesia de Assírio & Alvim/JDACT