Um amor que confunde palácios e governos
«(…) Contra o previsto pelos hábitos da corte, tinha entrado nos aposentos
da amiga sem aviso prévio. Embora estivesse a amanhecer, a penumbra do quarto
levara Constança crer que ainda era noite. Mesmo assim, espreguiçou-se
e recostou-se nas grandes almofadas para, sorridente, aceitar as carícias de Nieve que, de um salto, tinha subido
para a cama. O cão costumava dormir num canto do quarto, bobre um pequeno
escabelo, mas a entrada impetuosa de Inês tinha-o feito acordar em
sobressalto e levara-o a refugiar-se junto da dona. - Constança, ouvi-me, a comitiva está pronta, as mulas carregadas e as
nossas liteiras preparadas - dizia
Inês, falando muito depressa e quase comendo as palavras. - Como é possível que
ainda tenhais de vos vestir?
- Acalmai-vos, Inês! Para quê esse alvoroço? Até o Nieve está a tremer! Que pressas são
essas? Já sei que partimos hoje, mas não há necessidade de nos precipitarmos.
Mais parece que tendes pressa de sair desta casa! Se tivésseis tanto medo como
eu tenho! - Medo? Que temeis,
Constança? Afirma-se que o infante Pedro é galhardo de figura e gentil
de modos, que o casal real, Afonso e D. Beatriz, arde de desejos de vos abraçar
como filha e que Lisboa é uma cidade junto do mar, agradável e alegre. Que vêm
para aqui fazer esses temores
infundados? - Inês, já saí de minha casa noutra
ocasião. Era apenas uma criança e tive de saber o que são noites sem fim,
sentindo saudades de vozes amigas e da paisagem que, todos os dias, recordava.
Fui em busca de um destino que me parecia feliz e só achei solidão e tristeza.
Quem me garante que a história não vai
repetir-se?
- Não devíeis recordar tão
triste episódio. Também eu parti de casa sendo criança e nem por isso tenho
medo. – Mas encontrastes uma família e eu só achei desprezo. E se fosse esse o meu destino? - Não tem de
sê-lo. Talvez tenhamos trocado de sortes e que agora acheis a felicidade e eu,
as lágrimas. Em qualquer caso, não estou preocupada. À nossa frente temos uma
aventura que nos levará a conhecer novas terras, novas gentes e novos costumes.
Espera-nos, o que não é pouco, a excitação da descoberta. - Ou a decepção
perante a descoberta. - Não será o caso, Constança. O astrólogo consultado
pelo vosso pai assegurou que vos aguardam grandes venturas. Falou de dias de
amor, de ardores e de paixões. De novas vidas que assomam e de outras que se
apagam. De risos de crianças e das alegrias de mãe, depois de lutos justamente
lamentados.
- E quem vos assegura que essa
vida que se apaga não seja a minha?
Ou que me estão reservados esses ardores que confundem amores e alteram consciências? - Tende calma e
raciocinai! - respondeu Inês, visivelmente alterada. - A carta
falava de amores: dos vossos com o vosso futuro esposo. De ardores: dos que
ele, arrebatado de paixão, sentirá quando a vossa beleza for elogiada por
todos. De risos infantis: os dos filhos que Deus vos concederá. E, por fim, de
momentos felizes que se sucedem a momentos tristes. Pois bem, como eu a
interpreto, a profecia refere-se logicamente ao governo ditoso do infante Pedro
e à morte inevitável de Afonso IV de Portugal, que Deus guarde.
Constança limitou-se a fazer um gesto de resignação. Os passos da
ama que, ignorando que Inês se lhe antecipara, acudia a
despertá-la, poupara-lhe o esforço de responder à amiga. Invejava o optimismo
de Inês.
Talvez não tivesse percebido, como ela, que a esperavam dias felizes e um destino
glorioso! No entanto, o coração avisava-a de que uma névoa espessa e escura,
como a que costumava cobrir a várzea banhada pelo Duratón em Novembro, se espalhava sobre o seu futuro em Portugal.
Contudo, sabia também qüe, feliz ou desgraçado, aquele era o seu destino e que
não estava na sua mão modificá-lo. Sem sair do seu mutismo, levantou-se e
deixou que D. Leonor, Inês e as aias preparassem a partida».
In Inês de Castro, María Pilar Queralt de Hierro, Editorial Presença,
Lisboa, 2006, ISBN 978-972-23-3081-7.
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