«(…) É isso mesmo que se prepara sem demora para dizer ao rei: -
Senhor, adiai o acto de investidura até passar o meio-dia, rogo-vos. Por sua
vez, o que lhe responderá Duarte
perante tão aziago palpite, na hora do seu contentamento. – Que dizeis? - espantou-se o rei, que irracionalidade quereis transmitir-me?
Que vindes dizer-me neste dia de aleluias, em que o Senhor me escolheu e a mais nenhum para governar
Portugal? Escuta bem, mestre! Não quero nem ouvir falar do que só Deus
é capaz de decidir. Artes misteriosas, maus auspícios, não são hoje para aqui
chamados, e o momento, de tão transcendente, só ao Altíssimo diz respeito, a mais
ninguém, muito menos aos seres humanos como tu, que nem és da religião
perfeita. Além disso, não vos encomendei nada nem tenciono seguir os vossos
conselhos, porque Deus é o maior e é por Ele e com Ele que penso reinar.
Conversa acabada, pensou Duarte. Enganou-se. O físico, perplexo, entre a importância que dava
à descoberta e a injustificada rejeição do infante, não iria nem por sombras
ficar-se por ali. Artes misteriosas?
O futuro rei de Portugal não estava a
ser justo com uma arte que já o tinha beneficiado em consultas anteriores,
insurgia-se o judeu em silêncio. Mestre Guedelha, fiel aos ensinamentos dos
antigos, baseava os seus estudos de medicina e os diagnósticos em determinações
astrológicas, fenómenos para ele infalíveis, vindos do Alto, tal como o rei,
que olhava com reverência para o Céu. Um usava os astros, o outro o Protector
Celestial.
O momento era delicado. O físico, depois de consultar o pensamento,
desesperado por o rei não lhe prestar a atenção que pensava merecer decidiu
dizer-lhe o que descobrira. - Senhor, a consulta que fiz aos astros é bem
clara. Deveis deixar passar o meio-dia
para logo acederdes à real sucessão - sentenciou. A frase, dita num tom
imperativo, fez Duarte, mais que surpreender-se,
indignar-se, enquanto Guedelha se empertigava,
profundamente convicto do que dizia. - Que
astros observastes vós para fazerdes uma tão inesperada afirmação? -
questionou Duarte com azedume. O
mestre, ajoelhado aos pés do infante, levantou mais os olhos do que a cabeça, procurando
também ajeitar os sons das cordas vocais para tons mais convincentes, disposto
a vencer o cepticismo do infante. - Júpiter está atrasado e o sol pouco
perceptível, descaído, incerto, explicou Guedelha, antes do meio-dia, a
reunião destas condições determinam um futuro pouco auspicioso para o vosso
futuro reinado. Senhor, dai-me ouvidos, não vos exponhais a uma conjuntura
astrológica tão desfavorável.
- Coisas de iluminado, exclamou Duarte, agradeço-vos a preocupação, que
me parece sincera, acredito que os elementos sobrecelestes influenciam os seres
inferiores, respeito a ciência astrológica, mas hoje deixai-me. Hoje não! A
protecção divina é a única que neste momento respeito e confio. Não foi Deus que fez o Céu e a Terra?
Como poderia eu ceder às forças que sem o Seu poder se quedam inanimadas? Não sabes que o Sol, a Lua, Marte ou
Júpiter têm a vida que Deus lhes quis dar. Entendeste?
Entendeste mesmo. Se aceitasse a tua proposta, isso sim, estaria a
demonstrar fraqueza, desconfiança, pouco amor, e então expor-me-ia à Sua mão
justa. Entendeste? Entendeste
como estás a abusar dos desígnios do Senhor e
da minha paciência? Sem parar , contrafeito pela insistente
argumentação do mestre, Duarte
prosseguiu: - Deus sabe que lhe devo veneração e lha pago com toda a devoção.
Conhece-me, sou seu honesto servidor, e sabe que mereço o mando que hoje
passará do meu pai para mim. Que
contradição pode haver nos astros, se tenho a Sua bênção?
In Jorge Sousa Correia, O Mistério do Infante Santo, A Revelação dos
Pecados da Ínclita Geração, Clube do Autor, Lisboa, 2013, ISBN
978-989-724-067-6.
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