O Bastardo
Na Ribeira das Naus
«(…) Já não eram apenas dois fidalgos de preclaro nascimento. No seu
livro de linhagens havia uma página de glórias, escrita pelas suas próprias espadas.
Francisco estivera na batalha de Toro, militara distintamente na Espanha e como
voluntário se assinalara na conquista de Granada, ao serviço dos reis de Aragão
e Castela, contra os moiros. Albuquerque fora à conquista de Arzila e estivera
com uma esquadra portuguesa no cerco de Otranto, ao lado das forças do rei de Nápoles,
contra os turcos. Era Albuquerque homem de regular estatura, seco e nervoso.
Emoldurava-se-lhe o rosto alvo e comprido em longas barbas pontiagudas, que lhe
ondeavam sobre o peito. Gracejador e prazenteiro na conversação tranquila e
despreocupada, era, todavia, habitualmente severo e cismador.
Frequentemente se lhe avincava a fronte, como se no cérebro alguma
desconsoladora luta de ideias profundamente o contrariasse. Tinha no rosto os
traços indicadores de uma rara energia e de uma insofrida audácia. Às vezes relampagueava-lhe
cóleras no olhar, altivo e profundo como o olhar das águias. Naturalmente arrebatado,
fragueiro como então se dizia, as
suas cóleras eram como as tempestades do mar, que subitamente se agita em ondas
formidáveis. Passava Albuquerque por um dos mais cultos fidalgos do seu tempo e
dizia-se que era muito dado ao estudo da geografia e das letras clássicas.
- Bom olhado vos ponham, mestre
Salomão Zacuto, disse Francisco para um velho judeu, que junto dele ia passando
- Por vida minha, que muito embebido ides nos dizeres desse papel! -Vós aqui, Francisco
de Almeida! -exclamou o judeu, voltando - E vós também, Afonso de Albuquerque!
Em boa hora passei para ter a ventura de vos encontrar! - acrescentou, saudando
com uma grande expressão de respeito e de afectuosa alegria. E, reparando em
Lourenço, fez-lhe um carinhoso cumprimento, cheio de bondade. - Como o vosso
filho se vai fazendo homem, Francisco! - disse Zacuto - Que donairoso
cavaleiro, loiro e gentil como os príncipes encantados, não tendes vós aqui,
meu nobre fidalgo! - Então, mestre Salomão Zacuto! - repreendeu, sorridente, Francisco
de Almeida, com os olhos a encherem-se-lhe de água - Olhai que mo fazeis
vanglorioso!
- Desse perigo o creio eu livre,
que é vosso filho. Tem o bom exemplo dos seus. Para afugentar vaidades, aqui
vos tem a vós, embaixador que fostes na corte de França, cavaleiro de Granada,
companheiro do grão-capitão Gonçalo de Córdova na conquista do derradeiro
estado moiro da Espanha, ilustre pelo berço e pelo esforço do ânimo, e apartado
do brilho da corte, bem que de El-rei sejais tão querido e estimado que já à
sua mesa vos assentou. - Favores vossos. Com El-rei estarei, com ele e por ele,
cada vez que da minha espada e da minha vida carecer para o seu serviço e para
a honra e defensão desta nossa terra. Para o mais, lá tem consigo El-rei
fidalgos de sobra.
- Boas e nobres palavras as
vossas, Francisco - comentou Albuquerque - Assim também o entendo e sinto, e
bem que a vida em grande parte se me tenha decorrido no paço, desde os tempos
do senhor D. Afonso V, que Deus tenha em glória, mais me aprazem rudes pelejas
com moiros de África ou turquescos do que as grandezas e os festejos da corte. -
E bem o haveis mostrado, senhor -- observou o judeu. - Não tanto como era
ambição minha - retorquiu Albuquerque - Ainda criança me trouxeram ao paço
deveres de obediência aos meus e lá me prendem ao presente, como sabeis,
deveres de gratidão aos favores de El-rei. Grande mercê me faria, porém, Sua Alteza,
trocando-me por algum cometimento de perigo o repousado encargo de seu estribeiro-mor.
- Não faltarão ocasiões e certo
vos tem junto de si para vos aproveitar no que melhor quadre ao seu serviço e
ao vosso nome - disse Francisco. - Com boa razão o dizeis, meu nobre fidalgo, e
de vós outro tanto se pode dizer, embora andeis mais afastado da corte. El-rei
sabe conhecer os homens e, longe ou perto de si, lá tem na memória os que
hão-de ajudá-lo nos seus altos desígnios. - Os desígnios de Sua Alteza - volveu
Albuquerque a Salomão Zacuto - mais hão-de importar aos homens do mar, que a
nós outros, criados na guerra. Vede como depois do feito da Graciosa, no rio de
Larache, o moiro de Marrocos se encolheu acobardado, não dando azo a que El-rei
fosse à África, segundo era seu intento! Contra o turco, dia a dia mais
poderoso e mais audaz, parece que já não há espadas cristãs que se lhe oponham,
a tal vergonha chegámos! Das bandas de Castela nenhum perigo se avizinha e anda
já esquecida a contenda que nos levou à batalha de Toro!»
In António Campos Júnior, Guerreiro e Monge, Romance Histórico,
Livraria Romano Torres, Lisboa, 1952.
Cortesia de L. R. Torres/JDACT