Todos os Nomes. Regina Domna Dulcia
«Como a personagem do auxiliar de escrita que se motiva a averiguar a
vida de uma mulher desconhecida, ao encontrar o seu nome referenciado num
verbete da Conservatória, movimentamo-nos em espaços escassamente iluminados.
Nenhuma fonte conhecida regista a data e localidade onde nasceu a princesa, filha de Raimundo Berenguer IV de
Barcelona e da rainha Petronila de Aragão. Um lacónico registo indica o ano de 1174, mas não o dia e mês, em que se
casa com Sancho I, jovem herdeiro já então associado ao trono do
primeiro rei de Portugal. Outros registos facultam-nos a data e local da sua
morte: 26 de Agosto de 1198,
em Coimbra. Sabemos que foi sepultada na igreja do Mosteiro de Santa Cruz de
Coimbra, onde não resta hoje qualquer
vestígio em sua memória. À semelhança do laureado escritor (José
Saramago) deveremos nós também privilegiar a descrição dos grandes espaços
do ciclo da vida, para neles desvelar essa desconhecida mulher de nome
provençal.
Os ascendentes mais directos da futura rainha portuguesa são os protagonistas
de uma história épica. Mestres dos jogos do poder nesse grande tabuleiro de
xadrez que se abre sobre a grossa linha pirenaica. Uma estratégia perfeita com
que constroem, passo a passo, hegemonias cada vez mais amplas no imenso mosaico
de pequenas formações políticas. Um enquadramento feudal em que dispõem dos
suficientes recursos para atrair todas as fidelidades.
O ouro, extorquido ao Sul islâmico, que generosamente, distribuem e lhes garante também uma sólida
suserania no Languedoc. A partida está sobradamente ganha em 1137, quando a negociação de um acordo
de casamento determina o surgimento de uma nova e formidável unidade política.
Anos mais tarde, ao consumar-se a mesma união matrimonial, e com os sucessivos
nascimentos de pelo menos três filhos e uma filha, a nossa biografada D. Dulce, confirma-se também o
nascimento dessa singular confederação. A dinastia condal de Barcelona ascende
à realeza e governa a Coroa de Aragão.
Prosseguem os mesmos jogos de poder, mas agora na escala global em que
rivalizam todas as grandes monarquias do Ocidente europeu medieval. Nesta nova
partida, a família de D. Dulce encontra-se
também confrontada com os dois poderes universais do Império e da Igreja. Pugna
em que alcançam grandes vitórias como sofrem, naturalmente, enormes derrotas.
Em cada jogada, o valor das apostas é proporcional à grandeza das ambições. Não
é por mero acaso que os três primeiros monarcas, Raimundo Berenguer IV (1137-1162),
Afonso II (1162-1196) e Pedro II (1196-1213), encontram a morre em territórios
ultrapirenaicos. A morte do rei, não da dinastia, é também parte significativa
do preço a pagar pelo legado de um império finalmente estabelecido, sobre as
águas do Mediterrâneo, pelos seus imediatos sucessores.
A génese da grande fronteira
O vale do rio Ebro é o eixo central de um extenso planalto elevado
sobre rochas sedimentares, delimitado a norte pela cordilheira cantábrica e os
Pirenéus, a sul pelos montes Ibéricos e fechado, ainda, sobre a orla costeira
do Levante, pelas montanhas da cordilheira catalã. Plínio, o Velho, que foi procurador da Hispânia Citerior no tempo do imperador Vespasiano,
viria a referenciar, na sua História
natural, os limites da navegabilidade desse rio Hiberus, que diz ainda
ser bastante rico pelo seu comércio fluvial. Curiosamente, segundo alguns
especialistas, este primitivo vocábulo Hiberus,
Hibero ou Ibero significaria, literalmente, o rio.
Assim, aqueles povos peninsulares do século I, com quem os Romanos mantinham
esse proveitoso comércio fluvial, eram povos ibéricos, os povos do rio. E
portanto, também o contemporâneo nome alternativo da Hispania, Península Ibérica
ou Ibéria, esquecido esse sentido de
península ou terra do rio, tem remota
origem na denominação primitiva deste grande Ebro. Planalto, montanhas
e orla costeira conformam um amplo território, com marcante protagonismo
histórico. Território que nos séculos finais do domínio romano (desde a
última reforma administrativa do imperador Diocleciano) se individualiza
como província Tarraconensis. A sua capital é então a cidade de Tarraco
(Tarragona), ligada a Barcino (Barcelona) e a Roma, como às
capitais da Baetica e da Cartaginensis, pela via Augusta que acompanha a linha da costa desde Valentia (Valência)
até Narbo (Narbona), Massilia (Marselha) e Nicaea (Nice).
Uma outra via principal, a que cruzava toda a meseta central ab Asturica
Tarraconem, ligava Tarraco a Ilerda (Lérida) e a Caesaraugusta (Saragoça).
Vias secundárias seguiam por Calagurris (Calahorra) até aos limites do
Alto Ebro. Outras permitiam viajar directamente até Iaca (Jaca), ligada
já pelo Summus Pyrenaeus (Somport)
a Agnmum (Mont-de-Marsan) e Burdigala (Bordéus) na Aquitânia e de Caesaraugusta a
Pompaelo (Pamplona).
Como é sabido, a monarquia visigótica manteve a estrutura administrativa
das anteriores províncias romanas e mesmo depois da grave derrota de 507, quando os Pirenéus passam a ser a
fronteira com o reino merovíngio, conservou sempre o domínio da Septimânia. Algo menos lembrado é
o prolongamento desta monarquia num efémero reino independente, cujo território
parece coincidir com estas duas províncias da Tarraconensis e da Septimânia.
No imediato da morte do rei Rodrigo e do início da rápida conquista da
Península pelos exércitos de Tarik e Muza, um rei visigodo, Agila II, tentava
afirmar-se pela cunhagem de moeda em Tarraco, Gerunda (Gerona) e Narbona;
e um seu sucessor, chamado Ardo, aparece referenciado em algumas fontes analísticas.
A cronologia destes dois reinados,
entre 711 e720, é bastante controversa. De qualquer forma, não conseguiram
organizar uma significativa resistência».
In Nuno Pizarro Dias, Dona Dulce de Barcelona ([1153-1159]-1198), As
Primeiras Rainhas, Círculo de Leitores, 2012, ISBN 978-972-42-4703-8.
Cortesia de C. de Leitores/JDACT