Destino Sombrio
«(…) Onde estará a rapariga?
Vamos, vinde por aqui... não pode andar longe... vamos procurá-la! - exclamaram
os carrascos que, não satisfeitos com a chacina, antes de partirem, lançaram
fogo à casa, provocando um corrupio na vizinhança, que depois do troar do
alarme na aldeia, se aproximou, tentando perceber o que se passava. Catarina
apercebeu-se subitamente que estava encurralada na loja onde seu pai guardava
os víveres. Era impossível atravessar as chamas que consumiam já toda a
divisão. Sem alternativa, ajoelhou-se e rezou, rogando a Deus que lhe desse
forças para enfrentar toda a desgraça que sobre ela se abatia.
Fr. Maninho Viegas, tio de Catarina, sabendo das contendas dessa tarde
resolvera visitar o seu irmão Sancho para saber o que se passara. Ao chegar
junto à casa onde este vivia foi surpreendido pelo fogo e pelo frenesim da
vizinhança que, tentava em vão combater as chamas. Foi de imediato informado
que se desconhecia o paradeiro da sua família. As forças começavam a
falhar-lhe. - O que teria acontecido?
- pensava. Foi então que de súbito, se lembrou do túnel. Este fora escavado,
uns anos antes, por ele e pelo irmão, como resposta a uma eventual necessidade
de fuga. Será que a família se tinha
refugiado aí? O que teria
acontecido? Dirigiu-se assim, para o local onde se alcançava a entrada
do túnel, dissimulada por detrás de uma cascata, a fim de confirmar todas as
suas inquietações. Estava visivelmente consternado e, segurando um rosário na
mão direita, rezava fervorosamente enquanto caminhava em passos apressados.
Catarina chorava baixinho e rezava encurralada na loja, por baixo da casa dos
pais.
O monge aproximava-se agora da entrada do túnel. Atravessara a queda de
água e alcançara a entrada, por entre as pedras cobertas de musgo. Tacteando
com as suas mãos as paredes húmidas da cavidade prosseguiu, estranhando o facto
de ainda não se haver cruzado com o irmão ou a cunhada e receando o pior.
Chegado ao final do túnel ajoelhou-se, e procurou o acesso à loja da casa do
irmão. Sem grande dificuldade rastejou pela pequena abertura que se encontrava
ao nível do chão, afastando em simultâneo o pequeno baú que, anos antes, ambos lá
haviam colocado para encobrir a entrada.
Catarina, aterrorizada com o som do arrastar do baú, rezou ainda com
mais afinco, para que os caminhos do Céu se lhe abrissem, na hora em que julgou
ser descoberta pelos carrascos de seus pais. Subitamente uma mão pousa sobre o
seu ombro e uma voz familiar ressoa: - Catarina, minha filha... estás bem? Os teus pais? O que
se passou? - fr. Martinho encontrara a sobrinha. - Oh! Meu tio, ainda
bem que vos encontro, pois já não posso mais conter este sofrimento que sobre
mim se abate! - e desaba num pranto, correndo para os braços do monge, que a
abraça com ternura. Por entre soluços e breves palavras, Catarina relatou ao
tio o sucedido. - Minha querida Catarina! Que grande desgraça se abate sobre nós!
- a consternação do monge era visível.
A Fuga
Catarina e seu tio, fr. Martinho Viegas, seguiam agora o curso da ribeira,
aproveitando a escuridão que restava para não serem vistos. Para trás ficavam
as ruínas da casa consumida pelas chamas e a aldeia onde Catarina vivera toda a
sua vida. As pernas fraquejavam-lhes, especialmente as de Catarina, ainda combalida
pelo choque. As urtigas picavam-lhe os pés e tornozelos, mas ela continuava a
caminhada, de mão dada com o tio, imune à dor, ao frio e à fome. Pensava nos
pais, na saudade que tinha deles. Estavam mortos. Já nada havia a fazer!
- Catarina, tenho que te falar
de um assunto, disse o monge, quebrando o silêncio e aproveitando o conforto de
duas grandes pedras no leito da ribeira, para descansarem e se refrescarem um
pouco. -Dizei meu tio... - havia na voz da jovem um tom de tristeza. - Minha
pobre Catarina... a tua vida corre perigo! Agora que teu pai já não está
entre nós tenho o dever de zelar pela tua segurança. Os irmãos do mosteiro
acolher-te-ão, e dar-te-ão alimento... mas... temos uma pequena dificuldade... -Dizei,
meu tio... - Não poderás revelar a tua identidade. Corres grande perigo... os homens
que mataram teus pais é a ti que procuram agora, filha... vamos ter de te
esconder. - Oh!... Meu tio, explicai-me porque me procuram... falaram de uma chave...
porque corro perigo... explicai-me! Deveis-me isso, por Deus!
- Sim, minha filha. A seu tempo
revelar-te-ei esses porquês... mas por agora vamos deixar-te chegar ao final do
nosso destino, para que repouses convenientemente. Catarina olhava para o seu
braço direito enquanto caminhava. Os seus pés tropeçavam nas heras que cresciam
junto à ribeira e, ao olhar para baixo, já nem se reconhecia nas vestes sujas e
rasgadas. A marca que tinha no seu braço tinha uma forma bizarra. Parecia uma
constelação de estrelas. Vários sinais acastanhados, juntos numa composição que
lembrava um homem caçador. Nunca percebera muito bem o significado daquele
símbolo a que o pai chamava Orion, muito menos o do crescente
lunar que tinha tatuado no pulso, mas sabia que os devia esconder bem, para que
não lhe fizessem mal. Tinha aquelas marcas desde que se conhecia e, para grande
desgosto de sua mãe, outros sinais que a condenavam. A cor do seu cabelo já a
incriminara diversas vezes da prática de bruxaria, e o seu espírito rebelde
confundido com uma certa luxúria, e até mesmo, perversão. Diziam-lhe frequentemente
que os seus cabelos se assemelhavam às chamas que ardiam no inferno, visão que
a atormentava e que, durante os anos de meninice, a levara por uma vez a
tingi-los de preto».
In Maria João Martins Pardal e Ezequiel Passos Marinho, A Comenda
Secreta, Ésquilo, Lisboa, 2005, ISBN 972-8605-58-7.
Cortesia de Ésquilo/JDACT