quarta-feira, 24 de julho de 2013

A Comenta Secreta. Que segredos guardam Afonso Henriques e o mestre templário Gualdim Pais? Maria João Pardal e Ezequiel Marinho. «Ao chegar junto à casa onde este vivia foi surpreendido pelo fogo e pelo frenesim da vizinhança que, tentava em vão combater as chamas»

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Destino Sombrio
«(…) Onde estará a rapariga? Vamos, vinde por aqui... não pode andar longe... vamos procurá-la! - exclamaram os carrascos que, não satisfeitos com a chacina, antes de partirem, lançaram fogo à casa, provocando um corrupio na vizinhança, que depois do troar do alarme na aldeia, se aproximou, tentando perceber o que se passava. Catarina apercebeu-se subitamente que estava encurralada na loja onde seu pai guardava os víveres. Era impossível atravessar as chamas que consumiam já toda a divisão. Sem alternativa, ajoelhou-se e rezou, rogando a Deus que lhe desse forças para enfrentar toda a desgraça que sobre ela se abatia.
Fr. Maninho Viegas, tio de Catarina, sabendo das contendas dessa tarde resolvera visitar o seu irmão Sancho para saber o que se passara. Ao chegar junto à casa onde este vivia foi surpreendido pelo fogo e pelo frenesim da vizinhança que, tentava em vão combater as chamas. Foi de imediato informado que se desconhecia o paradeiro da sua família. As forças começavam a falhar-lhe. - O que teria acontecido? - pensava. Foi então que de súbito, se lembrou do túnel. Este fora escavado, uns anos antes, por ele e pelo irmão, como resposta a uma eventual necessidade de fuga. Será que a família se tinha refugiado aí? O que teria acontecido? Dirigiu-se assim, para o local onde se alcançava a entrada do túnel, dissimulada por detrás de uma cascata, a fim de confirmar todas as suas inquietações. Estava visivelmente consternado e, segurando um rosário na mão direita, rezava fervorosamente enquanto caminhava em passos apressados. Catarina chorava baixinho e rezava encurralada na loja, por baixo da casa dos pais.
O monge aproximava-se agora da entrada do túnel. Atravessara a queda de água e alcançara a entrada, por entre as pedras cobertas de musgo. Tacteando com as suas mãos as paredes húmidas da cavidade prosseguiu, estranhando o facto de ainda não se haver cruzado com o irmão ou a cunhada e receando o pior. Chegado ao final do túnel ajoelhou-se, e procurou o acesso à loja da casa do irmão. Sem grande dificuldade rastejou pela pequena abertura que se encontrava ao nível do chão, afastando em simultâneo o pequeno baú que, anos antes, ambos lá haviam colocado para encobrir a entrada.
Catarina, aterrorizada com o som do arrastar do baú, rezou ainda com mais afinco, para que os caminhos do Céu se lhe abrissem, na hora em que julgou ser descoberta pelos carrascos de seus pais. Subitamente uma mão pousa sobre o seu ombro e uma voz familiar ressoa: - Catarina, minha filha... estás bem? Os teus pais? O que se passou? - fr. Martinho encontrara a sobrinha. - Oh! Meu tio, ainda bem que vos encontro, pois já não posso mais conter este sofrimento que sobre mim se abate! - e desaba num pranto, correndo para os braços do monge, que a abraça com ternura. Por entre soluços e breves palavras, Catarina relatou ao tio o sucedido. - Minha querida Catarina! Que grande desgraça se abate sobre nós! - a consternação do monge era visível.

A Fuga
Catarina e seu tio, fr. Martinho Viegas, seguiam agora o curso da ribeira, aproveitando a escuridão que restava para não serem vistos. Para trás ficavam as ruínas da casa consumida pelas chamas e a aldeia onde Catarina vivera toda a sua vida. As pernas fraquejavam-lhes, especialmente as de Catarina, ainda combalida pelo choque. As urtigas picavam-lhe os pés e tornozelos, mas ela continuava a caminhada, de mão dada com o tio, imune à dor, ao frio e à fome. Pensava nos pais, na saudade que tinha deles. Estavam mortos. Já nada havia a fazer!
 - Catarina, tenho que te falar de um assunto, disse o monge, quebrando o silêncio e aproveitando o conforto de duas grandes pedras no leito da ribeira, para descansarem e se refrescarem um pouco. -Dizei meu tio... - havia na voz da jovem um tom de tristeza. - Minha pobre Catarina... a tua vida corre perigo! Agora que teu pai já não está entre nós tenho o dever de zelar pela tua segurança. Os irmãos do mosteiro acolher-te-ão, e dar-te-ão alimento... mas... temos uma pequena dificuldade... -Dizei, meu tio... - Não poderás revelar a tua identidade. Corres grande perigo... os homens que mataram teus pais é a ti que procuram agora, filha... vamos ter de te esconder. - Oh!... Meu tio, explicai-me porque me procuram... falaram de uma chave... porque corro perigo... explicai-me! Deveis-me isso, por Deus!
 - Sim, minha filha. A seu tempo revelar-te-ei esses porquês... mas por agora vamos deixar-te chegar ao final do nosso destino, para que repouses convenientemente. Catarina olhava para o seu braço direito enquanto caminhava. Os seus pés tropeçavam nas heras que cresciam junto à ribeira e, ao olhar para baixo, já nem se reconhecia nas vestes sujas e rasgadas. A marca que tinha no seu braço tinha uma forma bizarra. Parecia uma constelação de estrelas. Vários sinais acastanhados, juntos numa composição que lembrava um homem caçador. Nunca percebera muito bem o significado daquele símbolo a que o pai chamava Orion, muito menos o do crescente lunar que tinha tatuado no pulso, mas sabia que os devia esconder bem, para que não lhe fizessem mal. Tinha aquelas marcas desde que se conhecia e, para grande desgosto de sua mãe, outros sinais que a condenavam. A cor do seu cabelo já a incriminara diversas vezes da prática de bruxaria, e o seu espírito rebelde confundido com uma certa luxúria, e até mesmo, perversão. Diziam-lhe frequentemente que os seus cabelos se assemelhavam às chamas que ardiam no inferno, visão que a atormentava e que, durante os anos de meninice, a levara por uma vez a tingi-los de preto».

In Maria João Martins Pardal e Ezequiel Passos Marinho, A Comenda Secreta, Ésquilo, Lisboa, 2005, ISBN 972-8605-58-7.

Cortesia de Ésquilo/JDACT