Se me disserem que é absurdo falar assim de quem nunca existiu,
respondo que também não tenho provas de que Lisboa tenha alguma vez existido,
ou eu que escrevo, ou qualquer cousa onde quer que seja. In Fernando Pessoa
«(…) O bagageiro levanta o boné e agradece, o táxi arranca, o motorista
quer que lhe digam, para onde, e esta pergunta, tão simples, tão natural, tão
adequada à circunstância e ao lugar, apanha desprevenido o viajante, como se
ter comprado a passagem no Rio de Janeiro tivesse sido e pudesse continuar a ser
resposta para todas as questões, mesmo aquelas, passadas, que em seu tempo não
encontraram mais que o silêncio, agora mal desembarcou e logo vê que não,
talvez porque lhe fizeram uma das duas perguntas fatais, para onde, a outra, e
pior, seria, para quê. O motorista olhou pelo retrovisor, julgou que o
passageiro não ouvira, já abria a boca para repetir. Para onde, mas a resposta
chegou primeiro, ainda irresoluta, suspensiva, Para um hotel. Qual. Não sei, e
tendo dito. Não sei, soube o viajante o que queria, com tão firme convicção
como se tivesse levado toda a viagem a ponderar a escolha. Um que fique perto
do rio, cá para baixo. Perto do rio só se for o Bragança, ao princípio da Rua do
Alecrim, não sei se conhece. Do hotel não me lembro, mas a rua sei onde é, vivi
em Lisboa, sou português. Ah, é português, pelo sotaque pensei que fosse
brasileiro, Percebe-se assim tanto. Bom, percebe-se alguma coisa. Há dezasseis anos
que não vinha a Portugal. Dezasseis anos são muitos, vai encontrar grandes mudanças
por cá, e com estas palavras calou-se bruscamente o motorista.
Ao viajante não parecia que as mudanças fossem tantas. A avenida por
onde seguiam coincidia, no geral, com a memória dela, só as árvores estavam
mais altas, nem admira, sempre tinham sido dezasseis anos a crescer, e mesmo assim,
se na opaca lembrança guardava frondes verdes, agora a nudez invernal dos ramos
apoucava a dimensão dos renques, uma coisa dava para a outra. A chuva rareara,
só algumas gotas dispersas caíam, mas no espaço não se abrira nem uma frincha
de azul, as nuvens não se soltaram umas das outras, fazem um extensíssimo e
único tecto cor de chumbo. Tem chovido muito, perguntou o passageiro. É um dilúvio,
há dois meses que o céu anda a desfazer-se em água, respondeu o motorista, e
desligou o limpa-vidros. Poucos automóveis passavam, raros carros eléctricos,
um ou outro pedestre que desconfiadamente fechava o guarda-chuva, ao longo dos
passeios grandes charcos formados pelo entupimento das sarjetas, porta com
porta algumas tabernas abertas, lôbregas, as luzes viscosas cercadas de sombra,
a imagem taciturna de um copo sujo de vinho sobre um balcão de zinco. Estas
frontarias são a muralha que oculta a cidade, e o táxi segue ao longo delas,
sem pressa, como se andasse à procura duma brecha, dum postigo, duma porta
da traição, a entrada para o labirinto. Passa devagar o comboio de Cascais,
travando preguiçoso, ainda vinha com velocidade bastante para ultrapassar o
táxi, mas fica para trás, entra na estação quando o automóvel já está a dar a
volta ao largo, e o motorista avisa. O hotel é aquele, à entrada da rua. Parou
em frente de um café, acrescentou. O melhor será ir ver primeiro se há quartos,
não posso esperar mesmo à porta por causa dos eléctricos. O passageiro saiu,
olhou o café de relance, Royal de seu nome, exemplo comercial de saudades monárquicas
em tempo de república, ou remanescência do último reinado, aqui disfarçado de
inglês ou francês, curioso caso este, olha-se e não se sabe como dizer a
palavra, se rôial ou ruaiale, teve tempo de debater a questão
porque já não chovia e a rua é a subir, depois imaginou-se regressando do
hotel, com quarto ou ainda sem ele, e do táxi nem sombra, desaparecido com as
bagagens, as roupas, os objectos de uso, os seus papéis, e a si mesmo perguntou
como viveria se o privassem desses e todos os outros bens. Já ia vencendo os
degraus exteriores do hotel quando compreendeu, por estes pensamentos, que
estava muito cansado, era o que sentia, uma fadiga muito grande, um sono da
alma, um desespero, se sabemos com bastante suficiência o que isso seja para
pronunciar a palavra e entendê-la.
A porta do hotel, ao ser empurrada, fez ressoar um besouro eléctrico,
em tempos teria havido uma sineta, derlim
derlim, mas há sempre que contar com o progresso e as suas melhorias. Havia
um lanço de escada empinado, e sobre o arranque do corrimão, em baixo, uma
figura de ferro fundido levantava no braço direito um globo de vidro, representando,
a figura, um pajem em trajo de corte, se a expressão ganha com a repetição
alguma coisa, se não é pleonástica, pois ninguém se lembra de ter visto pajem
que não estivesse em trajo de corte, para isso é que são pajens, mais
explicativo seria ter dito. Um pajem trajado de pajem, pelo talhe das roupas,
modelo italiano, renascença. O viajante trepou os intérminos degraus, parecia
incrível ter de subir tanto para alcançar um primeiro andar, é a ascensão do
Everest, proeza ainda sonho e utopia de montanheiros, o que lhe valeu foi ter
aparecido no alto um homem de bigodes com uma palavra animadora, upa, não a diz, mas assim pode ser traduzido
o seu modo de olhar e debruçar-se do alcandorado patamar, a indagar que bons
ventos e maus tempos trouxeram este hóspede».
In José Saramago, O Ano da Morte de Ricardo Reis, Editorial Caminho,
Lisboa, 1995, ISBN 972-21-0286-9
Cortesia de Caminho/JDACT