O Bastardo. Na Ribeira das Naus
«(…) Salomão Zacuto indicava as primeiras caravelas que em Portugal e
na Europa foram armadas de artilharia de grosso calibre. A primeira fora
artilhada em Setúbal com bombardas de bronze, por ordem de João II, que muito
se havia entregado ao estudo do armamento dos navios e muito a peito havia
tomado os progressos da artilharia, mandando proceder ao fabrico de peças de
bronze. - E para que se não ficasse por uns pequenos baixéis da carreira da
Mina - prosseguiu Zacuto - ali se está embalando no rio aquela alterosa nau de
mil tonéis, a maior que ainda se viu cá; tão grande navio que certamente
iguala, se não excede, as maiores galés de Veneza!
E o moço Lourenço seguia a indicação do judeu, num olhar de infantil
entusiasmo. - Bem compreende El-rei que só nos mares o reino alcançará
tornar-se poderoso, à semelhança de Génova e de Veneza. É Portugal tão pequeno
estado que seria loucura sonhar outra coisa que não fossem armadas para segurar
o tráfico do Oriente e feitorias para abastecer as armadas. - Parecer diverso é
o meu, Francisco – objectou o estribeiro-mor do Rei com excepcional vivacidade e
como se uma recatada ambição lhe lampejasse no olhar - Nações, que principiaram
pequenas, foram essas as que no mundo talharam mais dilatados impérios. Entre
os livros do paço real existe um velho códice, que há cerca de vinte anos um
moço escudeiro de el-rei Afonso V costumava ler apaixonadamente, nas suas horas
de repouso. Conta a vida e os feitos de Alexandre, o Grande, o velho livro
latino. Em tal livro aprendi eu, Francisco de Almeida, como as nações pequenas se
tornam impérios. Se algum dia os nossos forem à Índia, se lá formos...
E Albuquerque não pôde concluir a frase, ou calculadamente aproveitou o
ensejo de a deixar incompleta. Por cima das muralhas do Castelo estrondeavam
foguetes, e a este sinal vibraram os sinos das numerosas igrejas da cidade. Chegavam
até à Ribeira os sons agudos das trombetas e charamelas da escolta real, que
saía do Castelo. Um ruído espantoso de vozes revoou da multidão irrequieta. - É
El-rei que sai da Alcáçova - disse o judeu. E o moço Lourenço, quase de pés nos
estribos, olhos fitos na ladeira do Castelo, o corpo agitado em estremecimentos
de ingénua comoção, exclamou: - Vem ver e baptizar as naus da Índia! - Ai, meus
ilustres fidalgos! No prazer de vos ouvir, de todo me passou que alguém me está
aguardando a bordo de uma galera de Veneza, que esta madrugada entrou!
- E não ficais, Salomão Zacuto,
agora que vai chegar El-rei? -
perguntou Lourenço. - Bem quisera ficar, meu querido menino, mas por mim espera
quem nada conhece da cidade e muito me foi recomendado de Veneza. - Ides agora buscá-lo ao navio? - perguntou
Francisco. - Irei ao cais do Corpo Santo, pois que defronte dele lançou
ferro a galera Santa Fé, conforme o
aviso que me deram. Se ainda o meu hóspede não houver desembarcado, certo será
que terei de o ir buscar a bordo. - Daqui ao cais maravilha será que logreis
atravessar por tamanha multidão - observou Albuquerque. Conheço bem o anadel dos espingardeiros, e fio que por
sua intervenção me será dado romper para o cais. – Pois ide em paz, mestre
Salomão Zacuto – disse-lhe Francisco, e logo acrescentou, como recordando-se
subitamente-Ah! É verdade, que de todo se me ia varrendo da memória. Dizei ao mancebo
vosso protegido, esse de quem me haveis falado, que em minha casa me procure
depois de amanhã, para tratarmos o que sabeis.
- Por ele e por mim vos beijo as
mãos, Francisco. E em qual ocasião deverá ir, sem que se vos torne molesto? - Logo da banda de manhã. Pelo que
dele me haveis dito, certo será que nos entenderemos a contento. - Nisso creio,
Francisco. - Ide, ide, enquanto o aperto se não torna maior com a chegada de
El-rei, que não poderá tardar. Salomão saudou Albuquerque e os Almeidas, e
tomou caminho por entre a multidão.
Ouvia-se iá próximo o tropel da companhia dos ginetes de El-rei sobre
as pedras da rua Nova, que João II havia pouco tempo mandara calçar. Os
cavalos, de orelhas fitas e olhares inquietos, escarvavam na areia impacientes
e soltavam o seu relincho estridente. As filas dos espingardeiros mais
comprimiam a multidão, para abrir caminho à comitiva, já muito próxima da Ribeira.
- Almas de Belzebu, para trás! - bramia o anadel
dos espingardeiros com a bigodeira ferozmente encrespada. Pelas Portas da Ribeira desembarcaram as
primeiras filas da companhia dos ginetes. Está-lhes o sol fulgindo em lampejos rutilantes
nos capacetes, nos arneses, na longa lâmina
das espadas. Branqueja como espuma o suor na anca dos cavalos, insistentemente
refreados. A multidão reconcentra-se instintivamente, num movimento de surpresa
e de receio. Vinham a cavalo e descobertos os porteiros da cana e os moços da
estribeira; depois, os homens das charamelas
com os seus trajes de vivas cores». In António Campos Júnior, Guerreiro e Monge,
Romance Histórico, Livraria Romano Torres, Lisboa, 1952.
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