O Português e o Universalismo
«(…) Quem quer que pôde abarcar no seu conjunto a actividade mental do
padre António Vieira não pode deixar de pasmar com o incrível dispêndio de
argúcia, dialéctica e energia na demonstração de chinesices como as profecias
do Bandarra ou o anúncio do casamento da rainha D. Maria Francisca com o
regente Pedro, seu cunhado, no Cântico
dos Cânticos. Ora, se bem observarmos, um estado colectivo precede Vieira e
o século XVII: o sebastianismo.
E que vem a ser o
sebastianismo? Note-se bem: é a esperança num milagre salvador (que
não veio, afinal...); a desesperança nas próprias forças, na própria
habilidade e na própria razão; a convicção de que problemas não se resolvem por
meios humanos e lógicos; de que não há uma razão dentro das coisas, mas unicamente
acasos, milagres. Dir-se-ia que o Português desiste de pensar e que o lume do logos o abandonou completamente. No meio
deste mundo alógico e milagroso por ele criado, Ulisses atravessou as portas de
Hércules e veio sossegadamente aportar ao estuário do Tejo, terra fresca e
agradável, onde se esqueceu da fiel Penélope e fundou uma cidade: é assim que, com
toda a sisudez, Bernardo de Brito narra a fundação da cidade de Lisboa. E
compreende-se, neste mundo donde o logos
se ausentou, que um herói homérico, filho de uma deusa pagã, se encontre assim
envolvido na história autêntica de um povo por cuja sorte se interessará Cristo
em pessoa, transformado em dispensador de milagres (exactamente como o
Júpiter de Homero). Ora, este estado colectivo a que chamei sebastianismo
teve, ao que parece, causas históricas determináveis, que estão na base da
frustração da actividade a cujos primeiros resultados assistia o século XVI:
[...] a rudeza
de uma austera, apagada e vil tristeza.
Ele é o prefácio da Monarquia
Lusitana e dos Sermões de Vieira.
Eis um caso em que as condições históricas parecem ter malogrado o
esforço de um grupo colectivo para, indo além dos acidentes geográficos e
romanescos, encontrar uma fórmula universal na vida psicológica ou no mundo
físico. Acaso a história se repetiu. Condições contingentes e ocasionais, que
nada têm que ver com a própria coisa, devem ter levado a preferir à Mensagem, em certo concurso de poesia (1934),
certo livro de versos hoje esquecido. Quais
foram essas condições? De que maneira se entreteceram? Como
desatá-las ou remediá-las? Eis uma série de problemas que é possível
propor de maneira inteligível. Um tecido de nexos a que se pode achar a lei.
Esta atitude contradiz a daqueles que afirmam: Há dentro do Português um génio universalista que o torna um povo superior
a este ou àquele, e tal, etc. E também contradiz, evidentemente, os que,
colocados no pólo oposto, declararem: O
Português não possui génio universalista.
Os que dizem uma ou outra das duas coisas negam o logos, ou não o reconhecem por momentos; como os Hebreus, que, supondo-se
o povo eleito de Deus, negavam uma outra ideia de Deus, mais universal e mais
lógica que a sua. Negando (é o ponto de vista que nos interessa agora) a existência
de um génio universalista no seio do
povo português, vamos cair numa espécie de sebastianismo com o sinal contrário.
Agora, o rei Sebastião falta-nos e caímos na escuridão irremediável. Escuridão
irremediável, digo, porque um povo que nunca atinge a expressão do universal é
coisa nenhuma, matéria inorgânica, sombra. É o logos quem alumia o mundo e torna possível conhecê-lo.
Condições variadas têm levado até hoje os Portugueses a naufragarem
numa ou noutra forma de sebastianismo e a desistirem de levar até ao fim uma
atitude crítica, isto é, uma atitude que dispense os Sebastiões, todos os
deuses, todos os génios, a única
atitude indomavelmente humana, de iniciativa. O Português é, como qualquer
outro povo, o resultado de uma conjugação de elementos, uma relação, um
cruzamento de fios numa rede. O logos,
o universal, a inteligibilidade (três maneiras de dizer a mesma coisa),
consiste em que esse enredamento se torna compreensível e destrinçável. Se
desistimos de o compreender, inventamos um Sebastião ou um absoluto que
simplesmente suprime o problema, negando a inteligibilidade das coisas.
E parece-me que, em contradição consigo mesmo, foi isto que fez Castelo
Branco Chaves. Partindo da ideia de que há uma inteligibilidade das coisas (o
mundo da universalidade), nega paradoxalmente a inteligibilidade do caso
português e, em lugar de uma explicação, inventa para ele um mito, uma divindade,
um Sebastião negativo. A eficiência dos sebastianismos é sempre a mesma,
como é sempre o mesmo o seu vício lógico: logicamente,
desiste-se da atitude crítica inventando um mito; praticamente, desiste-se da
iniciativa repousando no mesmo mito.
In António José Saraiva, Para a História da Cultura em Portugal, o
Português e o Universalismo, Gradiva Publicações, Lisboa, 1996, ISBN
972-662-459-2.
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