domingo, 21 de julho de 2013

Há dias assim... Para a História da Cultura em Portugal. António José Saraiva. O Português e o Universalismo. «Há dentro do Português um génio universalista que o torna um povo superior a este ou àquele, e tal, etc. E também contradiz, evidentemente, os que, colocados no pólo oposto, declararem: O Português não possui ‘génio’ universalista»

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O Português e o Universalismo
«(…) Quem quer que pôde abarcar no seu conjunto a actividade mental do padre António Vieira não pode deixar de pasmar com o incrível dispêndio de argúcia, dialéctica e energia na demonstração de chinesices como as profecias do Bandarra ou o anúncio do casamento da rainha D. Maria Francisca com o regente Pedro, seu cunhado, no Cântico dos Cânticos. Ora, se bem observarmos, um estado colectivo precede Vieira e o século XVII: o sebastianismo.
E que vem a ser o sebastianismo? Note-se bem: é a esperança num milagre salvador (que não veio, afinal...); a desesperança nas próprias forças, na própria habilidade e na própria razão; a convicção de que problemas não se resolvem por meios humanos e lógicos; de que não há uma razão dentro das coisas, mas unicamente acasos, milagres. Dir-se-ia que o Português desiste de pensar e que o lume do logos o abandonou completamente. No meio deste mundo alógico e milagroso por ele criado, Ulisses atravessou as portas de Hércules e veio sossegadamente aportar ao estuário do Tejo, terra fresca e agradável, onde se esqueceu da fiel Penélope e fundou uma cidade: é assim que, com toda a sisudez, Bernardo de Brito narra a fundação da cidade de Lisboa. E compreende-se, neste mundo donde o logos se ausentou, que um herói homérico, filho de uma deusa pagã, se encontre assim envolvido na história autêntica de um povo por cuja sorte se interessará Cristo em pessoa, transformado em dispensador de milagres (exactamente como o Júpiter de Homero). Ora, este estado colectivo a que chamei sebastianismo teve, ao que parece, causas históricas determináveis, que estão na base da frustração da actividade a cujos primeiros resultados assistia o século XVI:

[...] a rudeza
de uma austera, apagada e vil tristeza.

Ele é o prefácio da Monarquia Lusitana e dos Sermões de Vieira.
Eis um caso em que as condições históricas parecem ter malogrado o esforço de um grupo colectivo para, indo além dos acidentes geográficos e romanescos, encontrar uma fórmula universal na vida psicológica ou no mundo físico. Acaso a história se repetiu. Condições contingentes e ocasionais, que nada têm que ver com a própria coisa, devem ter levado a preferir à Mensagem, em certo concurso de poesia (1934), certo livro de versos hoje esquecido. Quais foram essas condições? De que maneira se entreteceram? Como desatá-las ou remediá-las? Eis uma série de problemas que é possível propor de maneira inteligível. Um tecido de nexos a que se pode achar a lei. Esta atitude contradiz a daqueles que afirmam: Há dentro do Português um génio universalista que o torna um povo superior a este ou àquele, e tal, etc. E também contradiz, evidentemente, os que, colocados no pólo oposto, declararem: O Português não possui génio universalista.
Os que dizem uma ou outra das duas coisas negam o logos, ou não o reconhecem por momentos; como os Hebreus, que, supondo-se o povo eleito de Deus, negavam uma outra ideia de Deus, mais universal e mais lógica que a sua. Negando (é o ponto de vista que nos interessa agora) a existência de um génio universalista no seio do povo português, vamos cair numa espécie de sebastianismo com o sinal contrário. Agora, o rei Sebastião falta-nos e caímos na escuridão irremediável. Escuridão irremediável, digo, porque um povo que nunca atinge a expressão do universal é coisa nenhuma, matéria inorgânica, sombra. É o logos quem alumia o mundo e torna possível conhecê-lo.
Condições variadas têm levado até hoje os Portugueses a naufragarem numa ou noutra forma de sebastianismo e a desistirem de levar até ao fim uma atitude crítica, isto é, uma atitude que dispense os Sebastiões, todos os deuses, todos os génios, a única atitude indomavelmente humana, de iniciativa. O Português é, como qualquer outro povo, o resultado de uma conjugação de elementos, uma relação, um cruzamento de fios numa rede. O logos, o universal, a inteligibilidade (três maneiras de dizer a mesma coisa), consiste em que esse enredamento se torna compreensível e destrinçável. Se desistimos de o compreender, inventamos um Sebastião ou um absoluto que simplesmente suprime o problema, negando a inteligibilidade das coisas.
E parece-me que, em contradição consigo mesmo, foi isto que fez Castelo Branco Chaves. Partindo da ideia de que há uma inteligibilidade das coisas (o mundo da universalidade), nega paradoxalmente a inteligibilidade do caso português e, em lugar de uma explicação, inventa para ele um mito, uma divindade, um Sebastião negativo. A eficiência dos sebastianismos é sempre a mesma, como é sempre o mesmo o seu vício lógico: logicamente, desiste-se da atitude crítica inventando um mito; praticamente, desiste-se da iniciativa repousando no mesmo mito.

In António José Saraiva, Para a História da Cultura em Portugal, o Português e o Universalismo, Gradiva Publicações, Lisboa, 1996, ISBN 972-662-459-2.

Cortesia de Gradiva/JDACT