«(…) Como é de todo impossível meter tanto auto de devoção sob o alqueire só resta uma porta: lê-los de modo a
ver no que é uma expressão fiel de uma ortodoxia, a sua impugnação. Incapazes
de crer no que Gil Vicente naturalmente acreditava, e com ele os seus contemporâneos,
os nossos exegetas vão vestir-lhe à força a camisa de onze varas do espinosismo
ou de outra doutrina igualmente afastada do pensamento e do sentimento de Gil
Vicente. Deste modo, esses exegetas profissionais do realismo avançam tranquilamente as suas ousadas opiniões,
que não fôra a distância que nos separa de Gil Vicente e a convenção implícita
mas absurda de que o tempo chega para criar uma indiferença moral em relação ao
que se julga, seria um acto de pura e simples difamação. A verdade é que, na
prática e na teoria, o tempo importa pouco em relação à Verdade embora não haja
verdade sem tempo. Nem ninguém se ocuparia de Gil Vicente se ele não fosse actual e, de certo modo, ninguém o actualiza
mais, embora erradamente, que essa critica sociológica realista. Simplesmente, nós não podemos impor a Gil Vicente
e à sua obra um estigma que ela não suporta e o primeiro dever do historiador e
do crítico, seja ele burguês, seja ele progressista, é o de aceitar e ver a
obra de Gil Vicente segundo a letra e segundo o espírito que nela se acham.
Mas objectar-se-á: não são essa letra e esse espírito de tal sorte que
a dúvida e o equívoco sejam legítimos?
Obras há para quem a questão se pode pôr e acaso sempre se porá, Shakespeare,
por exemplo. O caso de Gil Vicente é muito outro. A sua religiosidade, no
sentido mais tradicional, não é algo que tinja superficialmente as suas peças,
que aí apareça por acidente, é a matéria
de quase todas elas e, sem o admitir, só nos ficaria a solução de as considerar
ininteligíveis. Todas as passagens relativas aos anjos, aos mistérios da Igreja,
à Virgem, de quem Gil Vicente é um maravilhoso poeta, são da mais comum, mas
também da mais segura ortodoxia. Mas mesmo que algum detalhe apareça mais
contestável (ao fim e ao cabo não se trata de um tratado de teologia...),
bastará a arquitectura simbólica, a mise-en-scene
realisticamente medieval de toda uma visão teológica do mundo segundo a mais
comum tradição dos mistérios e
dos dados escriturários, para ter por conjectura arbitrária essa hipótese de espinosismo avant-la-lettre e outras.
Nem eu faço mais do que abrir portas que há muito estão abertas. Fora
desse círculo de racionalismo dogmático, a perfeita ortodoxia de Gil Vicente
não surpreende ninguém. O modelo de vicentistas que foi D. Carolina há muito
escreveu que a crítica de Mestre Gil só se explica por ser ele perfeitamente religioso, não só cristão,
mas cristianíssimo. E na mais precisa e valiosa análise que até hoje se
fez à linguagem e ao estilo de Gil Vicente, a de Paul Teyssier, pode ler-se que
tal análise permite aperceber as
vastas perspectivas de um mundo que se ordena segundo a mais estrita ortodoxia
catolica. Estamos portanto longe dos manes de Espinosa e do Deus sem
transcendência, se o não estamos da Natureza, ou da sua ordem racional à qual,
segundo Saraiva, heterodoxamente, Raimundo Lúlio, em bom franciscano,
assimilaria Deus.
Este último ponto, que resulta de uma confusão, no fundo da mesma ordem
e da mesma raiz que a do espinosismo,
merece uma atenção particular que haja na obra de Gil Vicente uma nítida
influência franciscana parece incontestável. Mas que isso ajude a suspeitar a
ortodoxia de Mestre Gil é uma hipótese que falha a compreensão da nossa
espiritualidade medieval e inspira a gregos e troianos singularíssima visão
acerca da mentalidade nacional. O mais lídimo representante dessa desfiguração
heterodoxa do franciscanismo é Jaime Cortesão. Os motivos por que Jaime Cortesão
invoca uma visão do franciscanismo que não corresponde à realidade, são nobres
e aceitáveis, como aceitáveis podem ser em certa medida os de A. José Saraiva.
O franciscanismo de Jaime Cortesão, cuja ideia reencontramos em Saraiva, é um franciscanismo de sonho, um
franciscanismo adequado à mentalidade livre-pensadora e socialista do século XIX,
digno pendant do Cristianismo suave e
humanístico de Renan, mas não é o franciscanismo real, o de S. Francisco, que jamais sonhou redimir a Natureza numa
perspectiva natural, senão naturalista,
mas apenas e com a violência extrema que no Evangelho se manifesta, na perspectiva
da Cruz. Jaime Cortesão vê o lirismo,
vê o amor à Natureza, a efusão grandiosa que ela suscita e pensa, contra a atitude de Francisco de Assis e as suas
palavras expressas, que isso podia ter para ele algum sentido fora da Cruz.
Se S. Francisco toma a Criação como uma rosa e para a submeter à ascese de uma
crucifixão redentora». In Eduardo Lourenço, Destroços, O Gibão de
Mestre Gil e Outros Ensaios, Gradiva, 2004, ISBN 972-662-945-4.
Cortesia Gradiva/JDACT