quarta-feira, 17 de julho de 2013

Poesia e Drama. Ensaio sobre a Poesia de Bernardim Ribeiro. António José Saraiva. «Se Bernardim Ribeiro cultivou, entre outros géneros, novela, romance, cantiga, sextina, etc., a pastoral lírica, quem nos impede de supor que cultivasse também a écloga dramática?»

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«(…) No Crisfal, pelo contrário, o tema Amor e Riqueza é um tema de meditação poética e filosófica, um problema de ordem geral que o Autor exemplifica com vários casos particulares: primeiro, o caso dos pastores:

[…] vi muitos pastores
andar guardando seus gados,
[…]
não querendo mais haveres,
nem querendo mais riqueza,
porque amor tudo despreza.
Est. 34.

depois, o caso da triste Helena, que chora:

Troquei amor por riqueza
porque me o trocar fizeram;
mas bem pago esta crueza,
que, em que cem contos me deram,
descontaram-se em tristeza:
meu esposo aborreço,
quando me a lembrança vem
do primeiro querer bem:
ninguém venda amor por preço,
pois ele preço não tem.
Est. 44.

e, enfim, o caso do próprio Crisfal, que tira as últimas conclusões desta doutrina geral:

cá fica o haver na Terra,
o amor a alma acompanha.
Est. 85.

e que se ergue a um ponto de vista mais amplamente filosófico:

Nus neste mundo nascemos
e nus sairemos dele;
neste meio que vivemos
só o rico é aquele
que ser contente sabemos.
Est. 86.

Por estas razões, não hesito em concluir que o autor da Carta - Cristóvão Falcão, como no-lo garante o editor, não pode ser ao mesmo tempo o autor do Crisfal; e assim se confirmam plenamente as dúvidas e reservas com que Abraam Usque acompanhou a atribuição da Écloga famosa ao autor da Carta. E, não sendo Cristóvão Falcão, poderá sê-lo Bernardim Ribeiro, com cujas obras a identidade de estilo é unanimemente reconhecida?
É aqui o lugar de examinar as diversidades que Raul Soares notou entre as éclogas bernardinianas e o Crisfal. De toda a sua argumentação ficaram de pé duas afirmações, uma quanto ao conteúdo da Écloga, outra quanto à sua realização artística: segundo a primeira, a história narrada no Crisfal não coincide com a história que serve de tema às Éclogas e à Menina e Moça; segundo a outra, ao passo que as Éclogas são monocórdios, lamentações que fluem sempre no mesmo tom, como as águas de um rio, e terminam por um corte abrupto, o Crisfal é um drama trovado, com esqueleto, princípio, meio e fim; e, por isso mesmo, com uma serenidade, objectividade, nitidez e precisão que as éclogas bernardinianas não têm.

NOTA: Pelo que toca aos restantes argumentos de Raul Soares, poucas palavras mostrarão a sua fragilidade. Refere-se um deles ao sentimento da natureza que, segundo o nosso autor, mal aparece na Écloga; a verdade é que toda ela é uma confidência à natureza; às árvores saudosas, às águas dos ribeiros, companheiros de seu mal, à noite calada, de ventos muda, quando chovia água miúda por cima da verde folha, e o escritor brasileiro poderia ter-se lembrado de que é sobre um álamo que fica escrita a história de Crisfal. Outro argumento de Raul Soares apoia-se na análise comparativa da adjectivação nas Éclogas e no Crisfal: ficamos sabendo que, numas e noutro, nem sempre os mesmos substantivos são acompanhados dos mesmos adjectivos. Seria preciso demonstrar, para chegar a qualquer conclusão, que os adjectivos não variam em Bernardim de écloga para écloga. Além de que as diversidades coleccionadas por Raul Soares são meramente acidentais, porque, na essência, revelam o mesmo estado de espírito, a mesma visão e o mesmo processo artístico. Finalmente, quanto à métrica, mais perfeita no Crisfal, qual foi o poeta que não variou e aperfeiçoou a sua métrica, principalmente se, como este, acompanhou a moda literária do seu tempo? A isto acrescentou Michaëlis que os arcaísmos são menos frequentes no Crisfal que nas Éclogas: diferença de quantidade apenas, e por isso improbativa; e que ideias heréticas não as encontro em Bernardim, mas sim na estrofe 99, em que Crisfal diz: não sei que a Deus custara...

Resultam destes dois factos, no Crisfal, aspectos insólitos ou desusados nas Éclogas: a cena dos beijos, o amor correspondido e viril, a localização geográfica precisa, a utilização de motes e cantigas alheias e até de versos castelhanos, e, enfim, aquele acabamento tão donairoso. Notemos, porém, duas coisas em réplica aos dois argumentos de Raul Soares: quanto ao facto de a história narrada no Crisfal não ser idêntica à história das Éclogas e da Menina e Moço, ele não é suficiente para nos obrigar a concluir que o autor daquele não seja o autor destas, porque o mesmo autor poderia ter tratado temas diversos, ter-se inspirado em casos diversos. E, quanto à diferença de estrutura, de realização artística, ela mostra que o Crisfal e as cinco Éclogas não pertencem ao mesmo género literário: de facto, já Menendez y Pelayo distinguia entre a pastoral lírica e a écloga dramática, a primeira tendendo a confundir-se com o puro lirismo, a segunda  a assimilar-se ao teatro. Nesta última categoria se classificará o Crisfal, a que alguém chamou já um drama trovado; e, se Bernardim Ribeiro cultivou, entre outros géneros, novela, romance, cantiga, sextina, etc., a pastoral lírica, quem nos impede de supor que cultivasse também a écloga dramática?

In António José Saraiva, Poesia e Drama, Estudos sobre Bernardim Ribeiro, Gradiva Publicações, Lisboa, 1996, ISBN 972-662-477-0.

Cortesia de Gradiva/JDACT