«(…) No Crisfal, pelo contrário, o tema Amor e Riqueza é um tema de
meditação poética e filosófica, um problema de ordem geral que o Autor exemplifica
com vários casos particulares: primeiro, o caso dos pastores:
[…] vi muitos pastores
andar guardando seus gados,
[…]
não querendo mais haveres,
nem querendo mais riqueza,
porque amor tudo despreza.
Est. 34.
depois, o caso da triste Helena, que chora:
Troquei amor por riqueza
porque me o trocar fizeram;
mas bem pago esta crueza,
que, em que cem contos me deram,
descontaram-se em tristeza:
meu esposo aborreço,
quando me a lembrança vem
do primeiro querer bem:
ninguém venda amor por preço,
pois ele preço não tem.
Est. 44.
e, enfim, o caso do próprio Crisfal, que tira as últimas conclusões
desta doutrina geral:
cá fica o haver na Terra,
o amor a alma acompanha.
Est. 85.
e que se ergue a um ponto de vista mais amplamente filosófico:
Nus neste mundo nascemos
e nus sairemos dele;
neste meio que vivemos
só o rico é aquele
que ser contente sabemos.
Est. 86.
Por estas razões, não hesito em concluir que o autor da Carta
- Cristóvão Falcão, como no-lo garante o editor, não pode ser ao mesmo
tempo o autor do Crisfal; e assim se confirmam plenamente as dúvidas e reservas
com que Abraam Usque acompanhou a atribuição da Écloga famosa ao autor da
Carta.
E, não sendo Cristóvão Falcão, poderá sê-lo Bernardim Ribeiro,
com cujas obras a identidade de estilo é unanimemente
reconhecida?
É aqui o lugar de examinar as diversidades que Raul Soares notou
entre as éclogas bernardinianas e o Crisfal. De toda a sua argumentação
ficaram de pé duas afirmações, uma quanto ao conteúdo da Écloga, outra quanto à
sua realização artística: segundo a primeira, a história narrada no Crisfal
não coincide com a história que serve de tema às Éclogas e à Menina
e Moça; segundo a outra, ao passo que as Éclogas são monocórdios,
lamentações que fluem sempre no mesmo tom, como as águas de um rio, e terminam
por um corte abrupto, o Crisfal é um drama trovado, com
esqueleto, princípio, meio e fim; e, por isso mesmo, com uma serenidade,
objectividade, nitidez e precisão que as éclogas bernardinianas não têm.
NOTA: Pelo que toca aos restantes argumentos de Raul Soares,
poucas palavras mostrarão a sua fragilidade. Refere-se um deles ao sentimento
da natureza que, segundo o nosso autor, mal aparece na Écloga; a verdade é que toda
ela é uma confidência à natureza; às árvores
saudosas, às águas dos ribeiros,
companheiros de seu mal, à noite calada,
de ventos muda, quando chovia água
miúda por cima da verde folha, e o escritor brasileiro poderia ter-se
lembrado de que é sobre um álamo que fica escrita a história de Crisfal. Outro
argumento de Raul Soares apoia-se na análise comparativa da adjectivação nas Éclogas
e no Crisfal:
ficamos sabendo que, numas e noutro, nem
sempre os mesmos substantivos são acompanhados dos mesmos adjectivos. Seria
preciso demonstrar, para chegar a qualquer conclusão, que os adjectivos não variam
em Bernardim de écloga para écloga. Além de que as diversidades coleccionadas
por Raul Soares são meramente acidentais, porque, na essência, revelam o mesmo
estado de espírito, a mesma visão e o mesmo processo artístico. Finalmente,
quanto à métrica, mais perfeita no Crisfal, qual foi o poeta que não
variou e aperfeiçoou a sua métrica, principalmente se, como este, acompanhou a moda literária do seu tempo? A
isto acrescentou Michaëlis que os arcaísmos são menos frequentes no Crisfal
que nas Éclogas: diferença de quantidade apenas, e por isso
improbativa; e que ideias heréticas não
as encontro em Bernardim, mas sim na estrofe 99, em que Crisfal diz: não sei
que a Deus custara...
Resultam destes dois factos, no Crisfal, aspectos insólitos ou
desusados nas Éclogas: a cena dos beijos, o amor correspondido e viril, a
localização geográfica precisa, a utilização de motes e cantigas alheias e até
de versos castelhanos, e, enfim, aquele acabamento tão donairoso. Notemos,
porém, duas coisas em réplica aos dois argumentos de Raul Soares: quanto ao
facto de a história narrada no Crisfal não ser idêntica à história
das Éclogas
e da Menina
e Moço, ele não é suficiente para nos obrigar a concluir que o autor
daquele não seja o autor destas, porque o mesmo autor poderia ter tratado temas
diversos, ter-se inspirado em casos diversos. E, quanto à diferença de
estrutura, de realização artística, ela mostra que o Crisfal e as cinco Éclogas
não pertencem ao mesmo género literário: de facto, já Menendez y Pelayo
distinguia entre a pastoral lírica e a écloga dramática, a primeira
tendendo a confundir-se com o puro lirismo, a segunda a assimilar-se ao teatro. Nesta última categoria
se classificará o Crisfal, a que alguém chamou já um drama trovado; e, se Bernardim
Ribeiro cultivou, entre outros géneros, novela, romance, cantiga,
sextina, etc., a pastoral lírica, quem
nos impede de supor que cultivasse também a écloga dramática?
In António José Saraiva, Poesia e Drama, Estudos sobre Bernardim
Ribeiro, Gradiva Publicações, Lisboa, 1996, ISBN 972-662-477-0.
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