A Camilo Pessanha e João Vasco
As Borboletas. A Lenda das Borboletas
«São tão lindas as borboletas! Quem as vê, que não lhes queira? Aí
vagabundando pelo azul dos campos, rasando as corolas frescas, amando-se,
beijando-se, libertas da larva abjecta, como almas de amantes despidas da
miséria terreal, a viajarem no infinito… São tão lindas, as borboletas!...
Mas na China são talvez mais lindas do que todas. É um deslumbramento
surpreende-las na quietação dos bosques, voejando aos pares, que se tocam, que
se abraçam, e enfiando pelas sombras misteriosas dos bambuais, com as longas
asas palpitantes, lanceoladas, em matizes maravilhosos, de negros aveludados,
de azuis meigos, de amarelos quentes, como se as loucas vestissem cabaias de cetim,
de sedas de alto preço…
Choc-In-Toi, a deliciosa Choc-In-Toi, habitava, há longos séculos, uma
pacífica aldeia do Yang-tszekiang, não longe do lugar que hoje se diz Xangai. Como
fosse muito dada a estudos literários e as escolas do seu sexo não lhe
satisfizessem a ambição, conseguiu que seus pais lhe permitissem o disfarçar-se
em homem, e assim abalou, a ir frequentar a mais famosa universidade do império.
Volveu ao lar após três anos; volveu tão pura como fora; da sua inocência há
provas irrecusáveis. Para não divagar muito nestas páginas, basta dizer a quem
me queira ouvir, que um lenço de seda branca, que ela enterrara na lama em presença
de uma sua cunhada predisposta a vaticinar-lhe rudes lances, foi depois tirado
sem uma só mancha e sem um só farpão, branco, puro, como a alma da donzela; e
basta saber que as flores da sua preferência, que ela deixara no jardim,
rogando aos deuses que as conservassem frescas como ela, assim se conservaram
durante a longa ausência, embora, como consta, a cunhada as fosse regando com
água quente tirada da chaleira.
Durante os três anos de seu estudo, um companheiro, por nome
Leun-San-Pac, intimamente se lhe afeiçoou. Era o seu camarada inseparável, o
seu irmão, dormindo juntos, conversando juntos, estudando juntos, divagando,
sonhando, e o lorpa do mocinho nunca se apercebeu que tinha ao lado uma mulher.
Quando soou a hora das despedidas, cortava o coração ver o rapaz, lamentando
o futuro isolamento, a perda de um amigo como aquele. A moça consolava-o. A moça
poisava-lhe nos ombros as suas mãos gentis, e exortava-o a que se enchesse de
coragem, a que se entregasse ao amor do estudo, até alcançar um alto grau de
sapiência. E depois, dizia-lhe entre soluços, e depois, se com saudade te
recordares de mim, abala, vem ver-me à minha aldeia. E dava-lhe indicações
precisas do lugar. Despediram-se entre choros.
A donzela esperou, esperou, esperou, quem poderá descrever esse
tormento? Guardando da família o seu segredo; e o moço não aparecia. Segundo os
usos do país, os pais destinaram-lhe um marido; e ela, a desolada, escrava da
obediência filial, obediência cega, indiscutível, que é a base da vida inteira
moral do povo china, inclinou-se, aceitou, sem que uma só queixa proferisse.
Três dias decorridos depois do contrato nupcial. Eis que chega à aldeia
o pobre Leun-San-Pac; pobre, porque a desventura se lhe acerca; mas rico de
erudição, de uma alma culta, e ocupando um lugar proeminente. Encontra o seu
amigo, encontra o seu irmão; mas agora sem disfarces, na graça plena dos seus
enlevos femininos, na gentil elegância das vestes que lhe são próprias, e com
grinaldas de flores na trança negra. De começo, este enigma, pouco a pouco
explicado, confunde-o, desnorteia-o, mas tudo se aclara. Da amizade ao amor o
salto é rápido. Oh! Ele ama-a agora, ele ama-a de todas as forças do seu ser, e
no olhar de fogo transluzem mil mistérios de adorações e de desejos!... É
tarde. A palavra dada ao feliz noivo não se quebra. Os velhos pais prezam mais
do que tudo, a própria honra».
In Wenceslau Moraes, Paisagens da China e do Japão, Livraria Editora
Viúva Tavares Cardoso, Biblioteca Nacional, nº 318041, Tipografia de Francisco
Luís Gonçalves, Lisboa, 1906.
Cortesia de B. de C. M. Dias/JDACT