quarta-feira, 10 de julho de 2013

Paisagens da China e do Japão. Wenceslau Moraes. «Três dias decorridos depois do contrato nupcial. Eis que chega à aldeia o pobre Leun-San-Pac; pobre, porque a desventura se lhe acerca; mas rico de erudição, de uma alma culta, e ocupando um lugar proeminente»

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A Camilo Pessanha e João Vasco
As Borboletas. A Lenda das Borboletas
«São tão lindas as borboletas! Quem as vê, que não lhes queira? Aí vagabundando pelo azul dos campos, rasando as corolas frescas, amando-se, beijando-se, libertas da larva abjecta, como almas de amantes despidas da miséria terreal, a viajarem no infinito… São tão lindas, as borboletas!...
Mas na China são talvez mais lindas do que todas. É um deslumbramento surpreende-las na quietação dos bosques, voejando aos pares, que se tocam, que se abraçam, e enfiando pelas sombras misteriosas dos bambuais, com as longas asas palpitantes, lanceoladas, em matizes maravilhosos, de negros aveludados, de azuis meigos, de amarelos quentes, como se as loucas vestissem cabaias de cetim, de sedas de alto preço…
Choc-In-Toi, a deliciosa Choc-In-Toi, habitava, há longos séculos, uma pacífica aldeia do Yang-tszekiang, não longe do lugar que hoje se diz Xangai. Como fosse muito dada a estudos literários e as escolas do seu sexo não lhe satisfizessem a ambição, conseguiu que seus pais lhe permitissem o disfarçar-se em homem, e assim abalou, a ir frequentar a mais famosa universidade do império. Volveu ao lar após três anos; volveu tão pura como fora; da sua inocência há provas irrecusáveis. Para não divagar muito nestas páginas, basta dizer a quem me queira ouvir, que um lenço de seda branca, que ela enterrara na lama em presença de uma sua cunhada predisposta a vaticinar-lhe rudes lances, foi depois tirado sem uma só mancha e sem um só farpão, branco, puro, como a alma da donzela; e basta saber que as flores da sua preferência, que ela deixara no jardim, rogando aos deuses que as conservassem frescas como ela, assim se conservaram durante a longa ausência, embora, como consta, a cunhada as fosse regando com água quente tirada da chaleira.
Durante os três anos de seu estudo, um companheiro, por nome Leun-San-Pac, intimamente se lhe afeiçoou. Era o seu camarada inseparável, o seu irmão, dormindo juntos, conversando juntos, estudando juntos, divagando, sonhando, e o lorpa do mocinho nunca se apercebeu que tinha ao lado uma mulher.
Quando soou a hora das despedidas, cortava o coração ver o rapaz, lamentando o futuro isolamento, a perda de um amigo como aquele. A moça consolava-o. A moça poisava-lhe nos ombros as suas mãos gentis, e exortava-o a que se enchesse de coragem, a que se entregasse ao amor do estudo, até alcançar um alto grau de sapiência. E depois, dizia-lhe entre soluços, e depois, se com saudade te recordares de mim, abala, vem ver-me à minha aldeia. E dava-lhe indicações precisas do lugar. Despediram-se entre choros.
A donzela esperou, esperou, esperou, quem poderá descrever esse tormento? Guardando da família o seu segredo; e o moço não aparecia. Segundo os usos do país, os pais destinaram-lhe um marido; e ela, a desolada, escrava da obediência filial, obediência cega, indiscutível, que é a base da vida inteira moral do povo china, inclinou-se, aceitou, sem que uma só queixa proferisse.
Três dias decorridos depois do contrato nupcial. Eis que chega à aldeia o pobre Leun-San-Pac; pobre, porque a desventura se lhe acerca; mas rico de erudição, de uma alma culta, e ocupando um lugar proeminente. Encontra o seu amigo, encontra o seu irmão; mas agora sem disfarces, na graça plena dos seus enlevos femininos, na gentil elegância das vestes que lhe são próprias, e com grinaldas de flores na trança negra. De começo, este enigma, pouco a pouco explicado, confunde-o, desnorteia-o, mas tudo se aclara. Da amizade ao amor o salto é rápido. Oh! Ele ama-a agora, ele ama-a de todas as forças do seu ser, e no olhar de fogo transluzem mil mistérios de adorações e de desejos!... É tarde. A palavra dada ao feliz noivo não se quebra. Os velhos pais prezam mais do que tudo, a própria honra».

In Wenceslau Moraes, Paisagens da China e do Japão, Livraria Editora Viúva Tavares Cardoso, Biblioteca Nacional, nº 318041, Tipografia de Francisco Luís Gonçalves, Lisboa, 1906.

Cortesia de B. de C. M. Dias/JDACT