«Correu voz era Coimbra
de que el-rei João III e sua esposa a rainha D. Catharina d’Austria iriam passar
ali as solemnidades da semana santa. N’aquelle tempo, a côrte portugueza
mobilisava-se ao sabor da phantasia real, quando não ia fugindo de medrosa adeante
das grandes epidemias devastadoras. Mas d’esta vez era o rei que a bel-prazer promovia
a excursão, n'uma época piedosa, á piedosa.
Cidade rica do santo
Corpo do seu rei
primeiro (in Sá de Miranda)
Aproveitando
simultaneamente o ensejo de por seus próprios olhos verificar os progressos das
escolas geraes, que procurara engrandecer, e que por sua ordem haviam sido
transferidas a Coimbra na primavera de 1537.
Estava-se no mez de Abril, o sol havia
entrado no signo de Tauro, Flora entornava por sobre os campos do Mondego
os variegados matizes da sua cornucopia vernal. Era sazão de geito para
desenfades bucólicos, e se alguma coisa podéra extranhar-se seria que o animo
sombrio do rei não se molestasse com o espectaculo das chilreadas alegrias da
natureza, tão gratas aos corações felizes, não ao d'elle, que desde o primeiro
amor ficara profundamente ferido.
De feito, o mordomo-mór
Fernando Faro confirmou pela sua chegada a Coimbra o boato de que a corte se
não faria esperar muito tempo, e nos espíritos de vinte annos, mais ou menos escravizados
ás impertinências do estudo, passou como um relâmpago de alegria a certeza d’essa
agradável diversão durante os ócios officiaes das endoenças, n’um tempo em que
os meios de viação eram morosos, e prohibiam o regalo das ferias pequenas, tão aproveitadas hoje.
A tradição amorosa
prendia-se â côrte dos nossos reis pelas memorias galantes dos trovadores e dos
serões poeticos, e a Coimbra pela lembrança saudosa da linda Ignez, cujas lagrimas choradas se haviam transformado na
fresca fonte solitaria, que rega as flores. Portanto, as imaginações juvenis
exaltavam-se, accendiam-se na vaga idealidade do amor, quando a côrte se aproximava;
particularmente em Coimbra, onde os trovadores tinham por mestres os rouxinoes
dos sinceiraes, a poesia começava a esfumar os seus deleitosos sonhos
incoercíveis logo que a fortuna promettia mostrar-lhe em breve as formosas
estrellas da constellação real, mais deslumbrantes talvez que as do firmamento…
Chegou finalmente a côrte,
as donzellinhas mimosas de fino trato palaciano poderam mirar o bello rosto no
claro espelho do Mondego, o rei João III pôde conversar os sábios extrangeiros que
preleccionavam nos paços das Alcáçovas, a rainha D. Catharina preparava-se para
assistir devotamente ás magestosas solemnidades do grande drama da redempção
christã, e fr. Francisco Bobadilha, ermando na ribeira tranquilla, repetia mentalmente
o sermão que a rainha lhe incumbira. Abertas de par em par as portas do templo,
na manhã de sexta-feira maior, accommodada a côrte nos seus respectivos
logares, pairou sobre a nobre multidão esse concentrado silencio que precede os
grandes actos funebres da Egreja:
Todas as almas tristes
se mostravam
pela piedade do Feitor
Divino,
onde ante o seu aspecto
benigno
o devido tributo lhe
pagavam.
Apenas n'aquella recolhida
mudez, que se alastrava por todo o templo, era licito aos olhos irem fallando a
sua linguagem cheia de reticencias e de scintillações, trocando uns com os
outros palavras de luz, que se entendem e não se escrevem… No grupo das
donzellinhas da côrte, rosas mal desabrochadas ainda na frescura matinal da
primeira mocidade, embebiam-se soffregamente os olhares namorados dos
trovadores de vinte anos como n’uma grande nuvem com luminosos toques de ouro e
rosa, d'essas que só podem accender-se no ceu durante as bellas alvoradas e
resplender nas formosas cabeças loiras, iriadas como a de Daphne. Uma dessas
encantadoras damasinhas parecia haver sido posta ali, entre Deus e os homens, para
despertar a vaga lembrança do paraiso ou para receber as orações e as lagrimas
e subir ao assento ethereo onde umas e outras se convertem em estrellas,
apparecendo sobre o fundo sereno e azul do ceu como para avisar as boas almas
de que já lá chegaram…»
In Alberto Pimentel, A Varanda de Nathercia, pq
9261 p46 v3, Oficina Tipographica da Empreza Litteraria de Lisboa, 1880.
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Lisboa/JDACT