terça-feira, 9 de julho de 2013

O Ano da Morte de Ricardo Reis. José Saramago. «… nome Ricardo Reis, idade quarenta e oito anos, natural do Porto, estado civil solteiro, profissão médico, última residência Rio de Janeiro, Brasil, donde procede, viajou […] parece o princípio duma confissão, duma autobiografia íntima»

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Sábio é o que se contenta com o espectáculo do mundo. In Ricardo Reis

«(…) Boas tardes, senhor. Boas tardes, não chega o fôlego para mais, o homem de bigodes sorri compreensivamente. Um quarto, e o sorriso agora é de quem pede desculpa, não há quartos neste andar, aqui é a recepção, a sala de jantar, a sala de estar, lá para dentro cozinha e copa, os quartos ficam em cima, por isso vamos ter de subir ao segundo andar, este aqui não serve porque é pequeno e sombrio, este também não porque a janela dá para as traseiras, estes estão ocupados. Gostava era de um quarto de onde pudesse ver o rio. Ah, muito bem, então vai gostar do duzentos e um, ficou livre esta manhã, mostro-lho já. A porta ficava ao fim do corredor, tinha uma chapazinha esmaltada, números pretos sobre fundo branco, não fosse isto um recatado quarto de hotel, sem luxos, fosse duzentos e dois o número da porta, e já o hóspede poderia chamar-se Jacinto e ser dono duma quinta em Tormes, não seriam estes episódios de Rua do Alecrim mas de Campos Elísios, à direita de quem sobe, como o Hotel Bragança, e só nisso é que se parecem.
O viajante gostou do quarto, ou quartos, para sermos mais rigorosos, porque eram dois, ligados por um amplo vão, em arco, ali o lugar de dormir, alcova se lhe chamaria noutros tempos, deste lado o lugar de estar, no conjunto um aposento como uma casa de habitação, com a sua escura mobília de mogno polido, os reposteiros nas janelas, a luz velada. O viajante ouviu o rangido áspero de um eléctrico que subia a rua, tinha razão o motorista. Então pareceu-lhe que passara muito tempo desde que deixara o táxi, se ainda lá estaria, e interiormente sorriu do seu medo de ser roubado. Gosta do quarto, perguntou o gerente, com voz e autoridade de quem o é, mas blandicioso como compete ao negócio de alugador. Gosto, fico com ele. E vai ser por quantos dias. Ainda não sei, depende de alguns assuntos que tenho de resolver, do tempo que demorem. E o diálogo corrente, conversa sempre igual em casos assim, mas neste de agora há um elemento de falsidade, porquanto o viajante não tem assuntos a tratar em Lisboa, nenhum assunto que tal nome mereça, disse uma mentira, ele que um dia afirmou detestar a inexactidão.
Desceram ao primeiro andar, e o gerente chamou um empregado, moço dos recados e homem dos carregos, que fosse buscar a bagagem deste senhor. O táxi está à espera defronte do café, e o viajante desceu com ele, para pagar a corrida, ainda se usa hoje esta linguagem de cocheiro e sota, e verificar que nada lhe faltava, desconfiança mal encaminhada, juízo imerecido, que o motorista é pessoa honesta e só quer que lhe paguem o que o contador marca, mais a gorjeta do costume. Não vai ter a sorte do bagageiro, não haverá outras distribuições de pepitas, porque entretanto trocou o viajante na recepção algum do seu dinheiro inglês, não que a generosidade nos canse, mas uma vez não são vezes, ostentação é insulto aos pobres. A mala pesa muito mais do que o meu dinheiro, e quando ela alcança o patamar, o gerente que ali estava esperando e vigiando o transporte, fez um movimento de ajuda, a mão por baixo, gesto simbólico como o lançamento duma primeira pedra, que a carga vinha subindo toda às costas do moço, só moço de profissão, não de idade, que essa já carrega, carregando ele a mala e pensando dela aquelas primeiras palavras, de um lado e do outro amparado pelos escusados auxílios, o segundo, igualzinho, dava-lho o hóspede, dorido da força que via fazer. Já lá vai a caminho do segundo andar. É o duzentos e um, ó Pimenta, desta vez o Pimenta está com sorte, não tem de ir aos andares altos, e enquanto ele sobe tornou o hóspede a entrar na recepção, um pouco ofegante do esforço, pega na caneta, e escreve no livro das entradas, a respeito de si mesmo, o que é necessário para que fique a saber-se quem diz ser, na quadrícula do riscado e pautado da página, nome Ricardo Reis, idade quarenta e oito anos, natural do Porto, estado civil solteiro, profissão médico, última residência Rio de Janeiro, Brasil, donde procede, viajou pelo Highland Brigade, parece o princípio duma confissão, duma autobiografia íntima, tudo o que é oculto se contém nesta linha manuscrita, agora o problema é descobrir o resto, apenas. E o gerente, que estivera de pescoço torcido para seguir o encadeamento das letras e decifrar-lhes, acto contínuo, o sentido, pensa que ficou a saber isto e aquilo, e diz, Senhor doutor, não chega a ser vénia, é um selo, o reconhecimento de um direito, de um mérito, de uma qualidade, o que requer uma imediata retribuição, mesmo não escrita. O meu nome é Salvador, sou o responsável do hotel, o gerente, precisando o senhor doutor de qualquer coisa, só tem que me dizer. A que horas se serve o jantar. O jantar é às oito, senhor doutor, espero que a nossa cozinha lhe dê satisfação, temos também pratos franceses. O doutor Ricardo Reis admitiu com um aceno de cabeça a sua própria esperança, pegou na gabardina e no chapéu, que pousara numa cadeira, e retirou-se».

In José Saramago, O Ano da Morte de Ricardo Reis, Editorial Caminho, Lisboa, 1995, ISBN 972-21-0286-9

Cortesia de Caminho/JDACT