segunda-feira, 15 de julho de 2013

Herculano Desconhecido. 1851-1853. António José Saraiva. «O progresso material nas mãos do absolutismo é um instrumento de guerra que o poder quebrará ou deixará enferrujar quando com ele tiver aniquilado a dignidade e os direitos das nações»

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Documentos. Colaboração de Herculano n’O Portuguez
N.º 1, 11 de Abril de 1853
«(…) O Portuguez tem por especial missão pugnar pelas liberdades e garantias prometidas ao país na lei constitucional da monarquia. Há-de defendê-las com o mesmo ardor com que há-de pedir os melhoramentos materiais. Os poderes públicos têm obrigação de os promoverem sem que lhos compremos à custa dos foros de cidadãos livres. Devemos supor, sinceras as intenções daqueles que dizem ser conveniente propormos as questões políticas para só tratarmos do progresso material; mas, nem por isso somos desobrigados de combater um erro que reputamos mais que nenhum perigoso. Posponhamos as questões, por agora, estéreis, de política abstracta, mas não as que dizem respeito aos direitos e garantias de cidadãos de um país livre. O povo de Roma pedia aos césares pão e circenses: os césares deram-lhos, e só aferrolharam a liberdade. Dentro de pouco a sociedade romana dissolvia-se no meio de uma corrupção espantosa e deixava ao mundo o mais memorável exemplo das consequências que tem para as nações, o esquecimento da dignidade humana.
A máquina de vapor e o caminho-de-ferro que multiplicam os produtos da indústria e facilitam a barateza das subsistências são o pão e o circenses do século XIX. A diferença está na distância das duas civilizações e das duas épocas. Pedi a máquina de vapor e o caminho-de-ferro, mas não consintais que os césares vos aferrolhem as liberdades adquiridas. Defendei os vossos interesses espirituais juntamente com os vossos interesses físicos. Esta é a nossa doutrina. É a nossa doutrina, porque não queremos insultar a memória de nossos pais que combateram e padeceram para conquistar essas garantias e direitos inscritos no pacto político do país; porque .não queremos amaldiçoar o nosso passado, nós que viemos ocupar nas fileiras da liberdade o lugar onde eles caíram.
É a nossa doutrina, porque entendemos que as necessidades morais do homem social não são menos atendíveis que as suas necessidades materiais; e porque desprezar aquelas para só curar de promover a satisfação destas é querer empregar uma das fórmulas da civilização para conduzir as sociedades ou à servidão, ou à barbaria, ou à dissolução política. É a nossa doutrina; porque o progresso material é filho das conquistas da liberdade, do progresso da civilização moral. A máquina de vapor e o caminho-de-ferro não nasceram entre os povos servos; nasceram nos países onde as garantias individuais, o amplo direito de associação, a franca manifestação do pensamento, a verdade eleitoral, a independência dos poderes, os factos sociais, em suma, em que aparece a fisionomia de um povo livre, eram uma realidade.
O progresso material nas mãos do absolutismo é um instrumento de guerra que o poder quebrará ou deixará enferrujar quando com ele tiver aniquilado a dignidade e os direitos das nações. Pugnar pelos melhoramentos materiais que razoavelmente o país tem direito a pedir, sem querer todavia que se lhes sacrifiquem ou se quer se posponham os sacrossantos direitos dos cidadãos, eis qual será a norma política do Portuguez.

In António José Saraiva, Herculano Desconhecido. 1851-1853, Edições SEN, Porto, 1953.

Cortesia de Edições SEN/JDACT