Documentos. Colaboração
de Herculano n’O Portuguez
N.º 1, 11 de Abril de 1853
«(…) O Portuguez tem por
especial missão pugnar pelas liberdades e garantias prometidas ao país na lei
constitucional da monarquia. Há-de defendê-las com o mesmo ardor com que há-de
pedir os melhoramentos materiais. Os poderes públicos têm obrigação de os promoverem
sem que lhos compremos à custa dos foros de cidadãos livres. Devemos supor,
sinceras as intenções daqueles que dizem ser conveniente propormos as questões
políticas para só tratarmos do progresso material; mas, nem por isso somos
desobrigados de combater um erro que reputamos mais que nenhum perigoso.
Posponhamos as questões, por agora, estéreis, de política abstracta, mas não as
que dizem respeito aos direitos e garantias de cidadãos de um país livre. O povo
de Roma pedia aos césares pão e circenses: os césares deram-lhos, e só
aferrolharam a liberdade. Dentro de pouco a sociedade romana dissolvia-se no meio
de uma corrupção espantosa e deixava ao mundo o mais memorável exemplo das consequências
que tem para as nações, o esquecimento da dignidade humana.
A máquina de vapor e o caminho-de-ferro que multiplicam os produtos da
indústria e facilitam a barateza das subsistências são o pão e o circenses do
século XIX. A diferença está na distância das duas civilizações e das duas épocas.
Pedi a máquina de vapor e o caminho-de-ferro, mas não consintais que os césares
vos aferrolhem as liberdades adquiridas. Defendei os vossos interesses espirituais
juntamente com os vossos interesses físicos. Esta é a nossa doutrina. É a nossa doutrina, porque não
queremos insultar a memória de nossos pais que combateram e padeceram para conquistar
essas garantias e direitos inscritos no pacto político do país; porque .não
queremos amaldiçoar o nosso passado, nós que viemos ocupar nas fileiras da liberdade
o lugar onde eles caíram.
É a nossa doutrina, porque entendemos que as necessidades morais do
homem social não são menos atendíveis que as suas necessidades materiais; e
porque desprezar aquelas para só curar de promover a satisfação destas é querer
empregar uma das fórmulas da civilização para conduzir as sociedades ou à servidão,
ou à barbaria, ou à dissolução política. É a nossa doutrina; porque o progresso
material é filho das conquistas da liberdade, do progresso da civilização
moral. A máquina de vapor e o caminho-de-ferro não nasceram entre os povos servos;
nasceram nos países onde as garantias individuais, o amplo direito de
associação, a franca manifestação do pensamento, a verdade eleitoral, a
independência dos poderes, os factos sociais, em suma, em que aparece a
fisionomia de um povo livre, eram uma realidade.
O progresso material nas mãos do absolutismo é um instrumento de guerra
que o poder quebrará ou deixará enferrujar quando com ele tiver aniquilado a dignidade
e os direitos das nações. Pugnar pelos melhoramentos materiais que razoavelmente
o país tem direito a pedir, sem querer todavia que se lhes sacrifiquem ou se
quer se posponham os sacrossantos direitos dos cidadãos, eis qual será a norma
política do Portuguez.
In António José Saraiva, Herculano Desconhecido. 1851-1853, Edições
SEN, Porto, 1953.
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