Destino Sombrio
«(…) Era também o camponês mais rico das redondezas, facto que estimulava
ainda mais invejas, dado que possuía terras suas e estava isento de impostos.
Tinha uma particularidade, ao que se dizia provocada por uma antiga ferida de
guerra que lhe tolhia os movimentos do braço esquerdo e lhe valera a alcunha de
maneta por parte dos aldeões. Vivia
junto de sua mulher, Carmen, e sua filha, Catarina, jovem de rara beleza,
cobiçada por todos os homens dos arredores pelos seus finos traços e brancura
cândida. O seu cabelo de fogo, comprido e ondulado, contrastava com a pele
clara marcada por sinais visíveis que, naqueles tempos, eram considerados
impuros. O azul cristalino dos seus olhos, no entanto, em nada revelava essa
impureza, de que tantas vezes tinha sido acusada. No braço direito, a jovem
transportava um sinal que, no dia do seu nascimento, a condenara a um destino peculiar,
profetizado ao ser concebida naquele solstício.
Ao cair da noite Carmen limpava as feridas de Sancho Viegas, que chegara
a casa coberto de sangue em virtude das escaramuças junto ao mosteiro. Catarina
aquecia água para embeber as compressas que a mãe colocava nas costas de seu
pai. - Mais devagar mulher! protestava Sancho, que não disfarçava as dores,
percebendo-se na sua voz a irritação que lhe provocavam. - Assim ainda me
esfolas a carne! Cuidado mulher, o meu ombro! As tuas mãos cortam como lâminas!
- continuava a protestar. - Já falta pouco... está quase... Catarina, essa água vem ou não vem? -
Carmen mantinha a calma. Já sabia que de nada adiantava exaltar-se,
especialmente na situação em que o marido se encontrava... só provocaria maior
irritação e agressividade. - Vou a caminho, minha mãe... aqui está a água! – Catarina
estava apreensiva! Os acontecimentos da tarde tinham-na feito pressentir más
notícias.
- Ajuda-me filha, molha essa compressa
e coloca-lhe o unguento enquanto eu... - foram interrompidas por violentas
pancadas na porta. - Quem será a esta
hora da noite? - Quem está aí?
- perguntou Carmen enquanto pegava instintivamente numa forquilha. Ninguém
respondeu e os fortes embates que ameaçavam arrombar a porta voltaram a ecoar
por toda a casa. - Catarina, depressa... o alçapão... mete-te lá dentro...
esconde-te! - ordenou, baixinho, Sancho Viegas, adivinhando que a insistente violência
das pancadas nada teria a ver com as escaramuças dessa tarde. Levantando-se com
algum esforço, Sancho, envolto em ligaduras, deixava transparecer o estado de
fragilidade em que se encontrava. Teve ainda tempo de pegar numa adaga, na vã
tentativa de defender a sua família, quando quatro forasteiros, envergando
capuchos brancos que lhes escondiam os rostos e um manto que lhes cobria todo o
corpo, invadiram a casa, tal era a violência dos seus actos. Dois deles agarraram
Carmen pelos braços, deixando-lhe pouca manobra para se defender.
Ainda tentou usar a forquilha que segurava na mão, mas esta escapara-lhe
com a pancada seca que os homens lhe deram na nuca e que quase a fez perder os
sentidos. - O que quereis de nós?...
É a mim que procurais?
Largai-a! - Sancho, apesar da fraqueza, não se deixava vencer pela derrota. - Onde está a rapariga? - perguntaram
os atacantes. - Diz-nos! Onde está a
rapariga? - Nunca!... nunca vos direi! Largai essa mulher se sois
homens! Levai-me a mim! Deixai-a ir em paz e tomai-me a mim! – Sancho Viegas
continuava a lutar. - Onde guardais a
chave dos mistérios? - insistiam os agressores.
Carmen recuperava agora as forças. Apesar de cambaleante, foi arrastada
pelos homens até, à mesa, derrubando, com o movimento do seu corpo, as tinas
que continham os unguentos e as compressas usadas momentos antes para aliviar
as dores de Sancho. - Não... não... Largai-me! - Carmen tentava defender-se sem
efeito. Os homens levavam a melhor. Catarina, escondida dentro do compartimento
que ficava por baixo da casa ouvia, aterrorizada, os gritos de seus pais. Uma
nesga de luz entrava pelas frinchas da madeira do soalho por onde podia espreitar
e deixava-a ver os homens que violentamente desrespeitavam a sua mãe e
maltratavam o seu pai. Conteve a custo um gemido de sofrimento, limpando as
lágrimas que lhe escorriam pela face abaixo. Viu a mãe ser brutalmente
espancada e violada e por fim, os braços inertes e o rosto inexpressivo,
acusavam um corpo já sem vida.
- Mãe… balbuciou, contendo o
pranto. Seu pai, sem forças, dominado por aqueles homens que o obrigavam a
ajoelhar, chamava em vão por Carmen. - Procuramos a chave... diz-nos onde está!
- Qual chave? Não sei do que
falais... - replicava Sancho. - Não zombeis de nós... a chave que trouxestes do
Egipto... sabeis bem a que chave me refiro! - insistiram os forasteiros, mostrando
saber bem o que procuravam. - Não sei ao que vos referis... largai-me! - Sancho
mantinha-se firme. - Diz-nos onde está a rapariga! Não pode andar longe.
Diz-nos onde está! - insistiram os homens de capuz, ameaçando-o com uma espada.
- Nunca vos direi onde ela está! Nunca... ouvistes
bem? Nunca! - disse Sancho Viegas, vencendo todas as debilidades e
continuando a lutar. Tinha sangrado muito... a fraqueza apoderava-se dele... e
o físico de um homem de quarenta anos, naquelas condições, pouco podia perante
os quatro forasteiros.
O olhar de Catarina cruzou-se, por breves e últimos instantes, com o de
seu pai, subjugado e em sofrimento, e a impotência perante tal situação provocou-lhe
uma angústia que guardaria até à morte. Contudo, tamanho sacrifício não poderia
ser em vão. Os pais davam a vida pela sua segurança e, mesmo sem compreender o
que se estava a passar, o seu dever era pôr-se a salvo. Nada mais podia fazer
por aquelas duas almas que eram a razão da sua existência. Em surdina, Catarina
soluçava compulsivamente. Limpou mais uma vez os olhos lacrimosos, acenando um
último adeus ao pai. A sua tristeza era profunda e ainda não digerira todas as
imagens que se gravavam na sua mente. As palavras daqueles homens ecoavam na
sua cabeça... era atrás dela que andavam... mas
porquê? Que poderiam querer de uma simples
rapariga como ela? Falavam de uma chave... que chave seria essa? Não compreendia! O medo tornara-se aterrador
ao perceber que os dois homens haviam assassinado o seu pai. Ouvira os seus
passos em direcção à porta e, de repente, tudo ficara silencioso».
In Maria João Martins Pardal e Ezequiel Passos Marinho, A Comenda
Secreta, Ésquilo, Lisboa, 2005, ISBN 972-8605-58-7.
Cortesia de Ésquilo/JDACT