O Guardador de Rebanhos
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II
O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
olhando para a direita e para a esquerda,
e de vez em quando olhando para trás…
E o que vejo a cada momento
é aquilo que nunca antes eu tinha visto,
e eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo essencial
que tem uma criança se, ao nascer,
reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
para a eterna novidade do Mundo...
Creio no Mundo como num malmequer,
porque o vejo. Mas não penso nele
porque pensar é não compreender...
O Mundo não se fez para pensarmos nele
(pensar é estar doente dos olhos)
mas para olharmos para ele e estarmos de acordo…
Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
mas porque a amo, e amo-a por isso,
porque quem ama nunca sabe o que ama
nem sabe porque ama, nem o que é amar...
Amar é a eterna inocência,
e a única inocência é não pensar...
III
Ao entardecer, debruçado pela janela,
e sabendo de soslaio que há campos em frente
leio até me arderem os olhos
o livro de Cesário Verde.
Que pena que tenho dele! Ele era um camponês
que andava preso em liberdade pela cidade.
Mas o modo como olhava para as casas,
e o modo como reparava nas ruas,
e a maneira como dava pelas coisas,
é o de quem olha para árvores,
e de quem desce os olhos pela estrada por onde vai andando
e anda a reparar nas flores que há pelos campos...
Por isso ele tinha aquela grande tristeza
que ele nunca disse bem que tinha,
mas andava na cidade como quem anda no campo
e triste como esmagar flores em livros
e pôr plantas em jarros...
IV
Esta tarde a trovoada caiu
pelas encostas do céu abaixo
como um pedregulho enorme…
Como alguém que duma janela
alta
sacode uma toalha de mesa,
e as migalhas, por caírem
todas juntas,
fazem algum barulho ao cair,
a chuva chovia do céu
e enegreceu os caminhos...
Quando os relâmpagos sacudiam o ar
e abanavam o espaço
como uma grande cabeça que
diz que não,
não sei porquê - eu não tinha medo -
pus-me a rezar a Santa Bárbara
como se eu fosse a velha tia de alguém…
[…]
Parte do Poema de Alberto Caeiro
(Fernando
Pessoa), in ‘Poesias’
ISBN 978-972-617-195-9
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