quarta-feira, 3 de julho de 2013

A Revolução de 1383. Tentativa de caracterização. António Borges Coelho. «Fernão Lopes narra os factos protagonizados pela rainha Leonor para mostrar a perda do seu carisma de chefe (alguma vez ela o teria alcançado face à arraia-miúda?) ou por que estes factos existiram e desencadearam o movimento popular (plano histórico)?»

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Divergência e Diálogo
«(…) Poderíamos prosseguir o quadro. Salientámos que os bens enumerados somam confiscos a confiscos e a rendas da coroa. O que o quadro prova é que a nobreza se reorganiza e concentra os seus bens em menor número de mãos. Ainda com os olhos postos no quadro III de Armando Castro. Nem só letrados entram no grupo da alta nobreza joanina. Nele entram, além de Rui Vasques Castelo Branco, já citado, Diogo Álvares, filho único do cidadão Álvaro Pais, também ele cidadão de Lisboa; Gonçalo Pires, ex-mercador, vedor da Fazenda em 1386, Regedor da Casa do Cível, cidadão de Lisboa; Afonso Furtado, capitão-mor do mar e cidadão de Lisboa; o doutor João das Regras. Armando Castro deveria incluir também neste quadro os burgueses que se alçaram aos mais altos cargos da igreja portuguesa: João Afonso de Azambuja, primeiro-arcebispo de Lisboa e depois cardeal, membro do governo revolucionário, e ainda o doutor Martim Afonso, futuro arcebispo de Braga, também do Conselho Revolucionário.
Os nomes da Sétima Idade estão longe de ficar por aqui. Por exemplo, podia perfeitamente incluir no seu mapa Antão Vasques, o tal juiz do crime em Lisboa a 6 de Dezembro de 1383 e que, no alardo da Vilariça, comandava já mais de setenta lanças e ainda o burguês, citado pelo autor, que serviu na guerra com 60 lanças pagas à sua custa.
Não. Os mapas de Armando Castro não mostram que a nobreza saiu da crise reforçada mas que se reorganizou e reagrupou engolindo muitos dos seus pares. Aliás, para podermos dilucidar o avanço ou recuo do modo de produção feudal, teríamos de descer da propriedade eminente da terra e baixar ao modo como essa terra era agricultada. O modo de produção proto-capitalista pode desenvolver-se, mesmo sob o peso da propriedade feudal, como o demonstraram gerações de lavradores alentejanos que durante séculos cultivaram as herdades das igrejas e dos senhores.

Sobre a Concepção Lopeana do Poder
No acto da escrita, o autor aparece revestido de um poder surpreendente. Como que, da prateleira infinita dos modelos, escolhe esta forma, aquele projecto e o materializa no grafismo dos sinais. Mas em História, até no verosímil romance histórico, o projecto está inçado de dificuldades e de limites. À partida, está mesmo travado pela necessidade de fazer luz sobre as ideias e os factos. Em A Concepção do Poder em Fernão Lopes, Luís de Sousa Rebelo apresenta-nos o autor da Crónica de D. João I demasiado desenvolto, em meu parecer, no materializar dos seus projectos ou concepções e pouco preso no limite dos factos. Por outro lado, a análise da concepção do Poder, desenvolvida no livro citado, pareceu-me obedecer à ideia subjacente de que o fim das crónicas, a sua causa final, seria justificar a legitimidade do monarca ex-mestre de Avis.
Por último, se parece claro que Fernão Lopes, tal como o frade do caldo de pedra, transporta nas três crónicas, sobretudo nas duas primeiras, elementos justificativos do futuro rei João (e também da ascensão de Nuno Álvares), quando se afirma que o cronista opta por um plano geral para a história dos três reinados, esbate-se demasiadamente o tempo e a experiência de ofício que medeiam entre a feitura das três crónicas, tão diferentes entre si.
No longo discurso histórico-político, da trilogia lopeana, Luís de Sousa Rebelo vai considerar três planos: o plano ético-político, o plano jurídico e o plano providencial. Quanto a nós, a ausência do plano da História ou a sua redução a mera exposição dos sucessos ocorridos, segundo a ordem que caracteriza o género cronístico enfatiza o tal plano geral, de Fernão Lopes que transcenderia a mera exposição dos factos, plano que, mobilizando ideias e livros da Corte de Avis, visaria justificar a legitimidade do monarca eleito nas Cortes de Coimbra de 1385.
No plano ético-político, Luís de Sousa Rebelo escreve que Fernão Lopes, ao condenar Leonor Teles e os outros governantes, por faltas à ética, prepara o caminho à ascensão de João I. Pergunto. Estas faltas e a sua condenação seriam inventadas por Fernão Lopes ou eram correntes na época dos acontecimentos? Fernão Lopes seguiria ainda no plano ético-político, o modelo do Rex Justus; defenderia a igualdade dos homens perante a lei (Crónica de D. Pedro I); mostraria que houve perversão do poder oligárquico, aliado aos estrangeiros; apresentaria o sentimento nacional identificado com o interesse comunal, com exclusão do poder dos não-naturais; e defenderia moral e politicamente a legitimidade da via electiva do Poder.
As palavras igualdade perante a lei e o seu conteúdo constituem novidade de tomo ante as ideias feudais de que não havia terra nem homem sem senhor. Mas o que pergunto é o seguinte:
  • Fernão Lopes narra os factos protagonizados pela rainha Leonor para mostrar a perda do seu carisma de chefe (alguma vez ela o teria alcançado face à arraia-miúda?) ou por que estes factos existiram e desencadearam o movimento popular (plano histórico)?
Relativamente ao plano providencial, Luís de Sousa Rebelo, depois de referir que Fernão Lopes segue a argumentação jurídica de João das Regras, nas Cortes de Coimbra, escreve: Ficava por solucionar a transmissão carismática do Poder. Insisto nas palavras que escrevi ao introduzir a Crónica de D. Pedro. Fernão Lopes falava para o seu tempo: ao elogiar Pedro, o cronista aconselhava Duarte»

In António Borges Coelho, A Revolução de 1383, Editorial Caminho, Colecção Universitária, 1984.

Cortesia da Caminho/JDACT