Madalena e os Evangelhos Canónicos
«(…) Apenas esta cena particular, o Noli
me tangere, tem uma maior coincidência testemunhal ao ser atestada pelo Evangelho de João, e a descrença dos apóstolos
na sua mensagem de Ressurreição narrada em Marcos e Lucas. É o constatar dos eventos
até aqui enumerados que fundamentará os ataques dos estudiosos e eclesiásticos
renascentistas aos partidários da ideia de unidade de pessoa em Maria Madalena.
Por tudo isto, os restantes e, curiosamente, mais famosos episódios da biografia de Maria de Magdala revelam-se como construção meramente ficcional,
que muito provavelmente terá resultado de associações de ideias suscitadas
pelos próprios textos. Associações que, dado a origem tardia dos próprios Evangelhos e a problemática sobre a sua
instituição como cânone, seriam possivelmente fundamentáveis pela predominância
de qualquer forma de tradição oral que, entretanto, se terá perdido.
À partida, temos apenas uma série de episódios fragmentários não ligados
entre si por mais do que o mero desejo de unidade implícito no pacto narrativo,
desejo que, nalguns casos, parece chegar ao delírio logo desde os primeiros
momentos.
Cirilo, bispo de Jerusalém, identifica Maria
Madalena com Maria Clopas, a irmã da Virgem e tia de Jesus, com a própria
Mãe de Jesus, e depois com outras duas Marias do Novo Testamento: A minha mãe era Ana, que me criou, e que
normalmente era chamada de Mariham. Eu sou Maria Madalena porque o nome da
aldeia onde nasci era Magdalia. O meu nome é Maria, que pertenci a Cleofas. Eu
sou Maria que pertenceu a Jacobos (Tiago) o filho de José o carpinteiro a cuja
guarda me entregaram. A posteriori, tornam-se evidentes dois ou
três dos aspectos que teriam permitido alguns dos relacionamentos entre a
personagem de Maria Madalena e
outras das figuras femininas evangélicas não nomeadas, mas cujos gestos
acabaram atribuídos à primeira. Cria-se, então, um campo paradigmático em que
determinadas palavras, ou elementos chave, parecem ter funcionado como forças
centrípetas, atraindo, por uma lógica simbólica, através da associação de
imagens ou ideias, esses gestos alheios sobre a figura nomeada.
Acoplamento das unções
Sendo uma das mirróforas, Maria Madalena pode aceitar ligar-se a
todas as outras figuras relacionadas com perfumes,
óleos e unções, em particular se esta associação é sancionada por um
outro elemento comum, pertença
do grupo em que se inclui (no caso, ser ex-possessa/doente). No que respeita à possessão é do consenso geral a
associação entre os sete demónios expulsos de Maria Madalena e os sete vícios, ou sete pecados mortais. Num dos
mais famosos dramas medievais, a Paixão de Jean Michel, 1490, estes chegam a ser transformados
em personagens que dialogam de facto com Madalena.
A situação vai repetir-se em textos de alguns autores dos séculos XVI-XVII, até
portugueses.
Assim, possessão e doença, enquanto duas formas de mal, alastram também o seu
sentido, englobando outras formulações com características paralelas, como a
ideia de pecado, evidenciado
na figura da adúltera e já pertença da protagonista do Jantar em Betânia. Esta ideia é agravada pela ligação ao perfume e ao seu mau uso. Mas, em
termos bíblicos e evangélicos, possesso
do demónio, tal como a palavra samaritano,
são também usados como sinónimo de pagão, como se pode ver quando Jesus é
insultado pelos judeus: Não dizemos com
razão que és samaritano, e que estás possesso de um demónio?. Este
ponto pode ainda permitir as associações posteriores da própria Maria Madalena com a estrangeira do episódio da
Samaritana que entra nas tradições populares por via da balada, em Inglaterra (The Maid and the Palmer), bem como nas
versões escandinavas e finlandesas. Em Portugal encontramo-la num simbolista, e
num fado nosso contemporâneo. No caso do texto de Mateus a figura feminina da
unção não se apresenta valorizada nem como boa, nem como má:
- Estando Jesus em Betânia, em casa de Simão, o leproso, aproximou--se dele uma mulher trazendo um frasco de alabastro de perfume precioso, e pôs--se a derramá-lo sobre a cabeça de Jesus, enquanto ele estava à mesa. Ao verem isto, os discípulos ficaram indignados e diziam: A troco do quê esse desperdício? Pois isso poderia ser vendido bem caro e distribuído aos pobres. Mas Jesus, ao perceber essas palavras, disse-lhes: Porque aborreceis a mulher? Ela, de facto, praticou uma boa acção para comigo. Na verdade, sempre tereis os pobres convosco, mas a mim nem sempre me tereis. Derramando este perfume sobre o meu corpo, ela o fez para me sepultar. Em verdade vos digo que, onde quer que venha a ser proclamado o Evangelho em todo o mundo, também o que ela fez será contado em sua memória
In Helena Barbas, Madalena, História e Mito, Ésquilo Edições, Lisboa,
2008, ISBN 978-989-8092-29-8.
Cortesia de Ésquilo/JDACT