O papel de Isabel na corte
«(…) A situação que Isabel
tinha de enfrentar não era um prado tranquilo. Para alguns, a escolha de Filipe
fora motivada pelo interesse em obter vantagens junto dos Lencastre, cujas
ambições sobre a França eram manifestas. Com efeito, a duquesa recebera do
duque a missão de obter o maior número possível de vantagens nas discussões com
os ocupantes ingleses. Ela tomou o partido destes, não somente porque sua mãe,
Filipa de Lencastre, era inglesa, mas também porque os combatentes ingleses
tinham ajudado seu pai, o rei João I, a triunfar sobre os espanhóis em
Aljubarrota (1385).
Tudo deixa crer que Isabel
participou no governo desde o primeiro momento, assistida por João de Pernes,
que tinha servido, depois de Filipe, o
Audaz, viários senhores vassalos do duque. Outros conselheiros coadjuvaram-na
particularmente, sempre que, na sua ausência, a duquesa substituía Filipe no
governo. Esta partilha era já praticada anteriormente, tendo em conta a
dispersão geográfica do estado borgonhês.
A duquesa Isabel tinha a seu crédito possuir um coração doce de benfeitora,
que ficou gravado nestes versos de Martin de France:
A cada um a dama abençoa
pela sua doçura, pela sua sabedoria.
Viva a senhora, e bendito seja
quem nos dá tal princesa!
Podemos admitir que a função áulica, que ela representava por um
comportamento próprio das grandes damas de ontem como de hoje, era ultrapassada
por um sentimento particular de justiça e de bondade manifestado por diversas
acções empreendidas no seu círculo. Chastellain conta que a sobrinha da
duquesa, Beatriz de Coimbra, que se casou com Adolphe de Clèves,
sobrinho do duque, que ele adorava, trazia um cilício de crina debaixo dos
vestidos, jejuava frequentemente e, na ausência do esposo, dormia sobre palha.
Ele acrescenta que nessa época, certos senhores e damas faziam de vez em quando
retiros nos conventos observando a respectiva regra. O mestre da Chambre aux
Deniers (Câmara dos Dinheiros)
reservava para despesas da duquesa e suas damas 40 mil libras por ano.
Isabel foi instruída dos usos dominantes em França e na Borgonha por Jeanne
d'Harcourt, condessa de Namur, que se viu, por ironia do destino, afastada por
Carlos VII, durante uma cerimónia de casamento, do lugar que a etiqueta lhe conferia.
Aliénor de Poitiers completa estas descrições na sua obra Les honneurs de la Cour, na qual ela registou as minúcias do
cerimonial contadas por sua mãe, Isabel de Sousa, mulher da alta nobreza
portuguesa que veio para a Borgonha a fim de fazer companhia à duquesa, aí
tendo casado com Jean de Poitiers, camareiro do duque. Uma e outra, no estrito
respeito por este formalismo, sublinham tratar-se de uma ordem que permite manter
a hierarquia da obediência, dos vassalos ao duque e deste a uma entidade
superior. Para seu desgosto, no entanto, foram introduzidas mudanças que
levaram Aliénor, que era dama de honor da condessa de Charolais, a dizer agora cada um age de sua maneira. A
influência de Isabel na fixação deste protocolo, que sequencialmente se aplicou
à corte da Áustria e mais tarde à de França, levou alguns a atribuir-lhe a obra
produzida por Aliénor.
O duque ditava igualmente a moda e por vezes via-se posto em causa
pelos predicadores que, por necessidade, regressavam às prescrições das
epístolas de Paulo, condenando os cabelos longos, por exemplo. Depois dos
casamentos de Filipe e de seu filho Carlos, o trânsito de pessoas levou os
borgonheses a descobrir os costumes dos ingleses e dos portugueses. Jean
Lefèvre de Saint-Remy descreve os hábitos da infanta Isabel que tocaram os
membros da delegação enviada a Portugal e que Cartellieri resume assim: sobre um manto cortado dos dois lados,
trazia um capuz de veludo azul e ainda por cima um chapéu de Brabante.
A duquesa e Joana d'Arc
Alguns meses depois da sua chegada à Flandres, à duquesa deparou-se-lhe
um problema de consciência, a partir de um acontecimento cujo desenlace se
revestiu de uma grande brutalidade. Joana d'Arc, que acabava de libertar
Orleães dos ingleses, convencendo assim Carlos VII da estranha missão que
encarnava, foi feita prisioneira junto das muralhas de Compiègne a 24 de
Maio de 1430 por tropas borgonhesas
sob as ordens de João de Luxemburgo, que comandava o cerco ao burgo. Tendo
vindo a tornar-se o principal obstáculo à política expansionista dos ingleses,
a jovem guerreira estava a ser procurada como uma fora-da-lei».
In Daniel Lacerda, Isabelle de Portugal –
duchesse de Bourgogne, Éditions Lanore, 2008, Isabel de Portugal, Duquesa de
Borgonha, Uma Mulher de Poder no coração da Europa Medieval, tradução de Júlio
Conrado, Editorial Presença, Lisboa, 2010, ISBN 978-972-23-4374-9.
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