terça-feira, 27 de agosto de 2013

O Que Diz Molero. Leituras. Dinis Machado. «… que sabemos nós? Que não sabemos nada de nada, inventámos a roda e o avião, construímos barragens e arranha-céus, sujeitos bizarros julgam ter entrado naquilo a que chamam parapsicologia, mas a verdade é que não sabemos nada de nada. Molero também diz isso…»

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«(…) Muitas pessoas fazem essas coisas no chão, disse Mister DeLuxe com certa gravidade, e fazem doutras maneiras, animalescas ou civilizadas, mas isso não é a mesma coisa que fazer, por exemplo, num caixão. De modo nenhum, disse Austin, de modo nenhum, Mister DeLuxe.
Mister DeLuxe meneou levemente a cabeça. Há uma situação, disse ele, e a interpretação assaz discutível dessa situação. Afinal, Molero nem estava lá para ver. Ele tinha um tio napolitano, disse Austin, que, além de cantar, tentava acertar num escarrador, cuspindo de alguns metros de distância. Quase nunca acertava, e era a tia que limpava o chão em volta do escarrador. É o destino do género humano, disse Mister DeLuxe. O quê?, perguntou Austin. Quase nunca acertar, disse Mister DeLuxe. Austin sorriu. O rapaz presenciava a exibição, disse ele, ficava fascinado por ela, isto quando ia a casa do tio napolitano, ou que cantava canções napolitanas, o relatório não especifica. Mister DeLuxe levantou a mão esquerda. Lembre-se do que lhe disse, Austin, todas as infâncias são estranhas, o que equivale a dizer que nenhuma delas o é.
Mister-DeLuxe olhava para um ponto indefinido como se procurasse recordações. Se você procurar bem na sua infância, Austin, há-de encontrar nela um gato sarnento que lhe roçou o lombo nas pernas cinquenta ou sessenta vezes, e isto, segundo Molero, marcou a sua vida. Se não encontrar um gato sarnento encontra outra coisa qualquer. Isso é verdade, disse Austin, com um olhar claro. Pois é, reforçou Mister DeLuxe, e daí ser imprescindível considerar o homem da tatuagem do Rato Mickey, o jogo de bowling e o jogo de cama, o tio que não acertava no escarrador, como sinais de todas as infâncias. Simplesmente, divergem as manifestações, são inesgotáveis os recursos do acaso. Mister DeLuxe começou a mexer a cabeça para baixo e para cima. Eu, por exemplo, disse ele, tive um primo que me urinava nos sapatos, fazia isso de noite quando eu estava a dormir, de manhã eu metia o pé no sapato e era como se metesse o pé no penico. Mister DeLuxe sorriu para, a recordação. Uma vez, disse, dei-lhe uma tareia e acabei com isso. Isto marcou a minha vida? Austin encolheu os ombros. Que sabemos nós, Mister DeLuxe, que sabemos nós? É óbvio, disse Mister DeLuxe, que não sabemos nada de nada, inventámos a roda e o avião, construímos barragens e arranha-céus, sujeitos bizarros julgam ter entrado naquilo a que chamam parapsicologia, mas a verdade é que não sabemos nada de nada. Molero também diz isso, disse Austin, quando a páginas cento e oito observa a dificuldade de separar, muitas vezes, defeitos inatos de defeitos adquiridos. Hum, fez Mister DeLuxe, não sabemos nada de nada, mas com licença, Alexandre o Grande e Napoleão podem ter tido uma infância a que Molero chamaria estranha, mas acabaram por ser Alexandre o Grande e Napoleão. Quanto a essa porcaria dos burriés secos é perfeitamente inata. Percebe o que eu quero dizer, Austin?»

In Dinis Machado, O Que Diz Molero, Livraria Bertrand, Amadora, 1977.

Cortesia de Bertrand/JDACT