sexta-feira, 23 de agosto de 2013

Um Deus Passeando pela Brisa da Tarde. Grande Prémio APE 1995. Mário de Carvalho. « Quis impressionar-me, discorrendo sobre Magão e o seu tratado de lavoura. A um cartaginês, como Magão, assistiria a sensibilidade bastante para se pronunciar sobre a agricultura do lado de cá do Mediterrâneo?»

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«(…) Pisoteei meticulosamente o desenho com as minhas botinas cardadas, até restar apenas uma lavra de areia remexida. Acto inútil. Não se apagam as realidades destruindo-lhes os símbolos. Talvez muitas milhas além, no caminho do cardador outros desenhos aparecessem e outras memórias fossem reavivadas. Estava extinta a congregação do peixe? Eu procurava convencer-me de que sim. Que sabia eu? Foi pouco depois que Proserpino me propiciou a surpresa da sua visita. Eu estava no meu pouso habitual, à mesa de mármore verde, e fazia contas. Tinha vendido dois júgeros numa estrema da propriedade, para me livrar de um conflito de demarcação com um dos meus vizinhos, de comportamento demasiado rústico para o meu trato. O preço ajustado era misto, quantificado em áureos, medidas de azeite e fardos de linho. Quis verificar tudo, com cautelas amiudadas, porque a confiança não sobrava. Conferi os preços dos géneros e decidi-me a passar a manhã de volta do ábaco e das tabuinhas. Quando os cães romperam a ladrar e esboçaram uns arremessos em direcção ao portão do muro, e um escravo estranho entrou e fez menção de os afastar com um pau ferrado, julguei que era o meu vizinho que aí vinha, uma vez mais, a lamuriar-se e a implorar reduções no clausulado.
Mas logo atrás do escravo, meio curvada, e muito temerosa dos cães, apareceu aquela figura alta, adunca, nervosa, que eu tão bem conhecia e desprezava algum tanto. Senti uma incomodidade quase dolorosa: Proserpino! Ergui-me, alarmado: que faria Proserpino aqui?Mara se velava, descia os degraus da casa, muito serena, sossegava os cães e deixava que o intruso a saudasse. Não manifestou qualquer surpresa e sorriu para Proserpino como se o tivera visto no dia anterior. Mara estava sempre à altura das situações. Ele vinha enjorcado num grande manto asiático, bordado, cheio de pó, e trazia na cabeça um chapeirão de viagem, que logo tirou, respeitosamente. Pelos gestos largos, percebi que pedia a Mara autorização para que a sua comitiva entrasse. Mara disse qualquer coisa em voz alta, escravos acorreram, afastaram os batentes do portão.
A liteira e os acompanhantes de Proserpino passaram entre mim e Mara e foram conduzidos à cavalariça. Enquanto o cortejo desfilava, imundo e cansado, Proserpino procurava-me com os olhos inquietos. Distingui perfeitamente o seu olhar ansioso e a contracção da cara, num esforço de atenção, quando, ao longe, se apercebeu da minha presença. Deu dois passos, fitou melhor. Sorriu. Tinha-me reconhecido. Atirou um gesto indeciso a Mara, numa cortesia atabalhoada, e quase correu na minha direcção. - Lúcio, Lúcio, saúde! Que bom ver-te, ao fim de todos estes anos...
Aí estava Proserpino, aos tropeços no seu disforme manto, quase a rojar-se a meus pés. Que havia eu de fazer? Não podia maltratar um hóspede que se mostrava solícito, embora não convidado. Dissimulei a contrariedade. Propus-lhe restaurar-se no balneário, fiz-lhe companhia, pedi-lhe conselhos sobre aquela minha transacção, admiti-o à mesa de mármore verde, escutei-o com paciência e urbanidade. Depois, mandei que selassem duas mulas e acompanhei-o num passeio pelos meus domínios. Proserpino não era muito afeiçoado ao campo, escapava-lhe completamente a beleza de um sobreiro isolado numa clareira amarela de restolho, nunca tinha lido Hesíodo, passava indiferente por um santuário. Mas não deixou de citar Virgílio: feliz é aquele que conhece os deuses campestres...
Quis impressionar-me, discorrendo sobre Magão e o seu tratado de lavoura. A um cartaginês, como Magão, assistiria a sensibilidade bastante para se pronunciar sobre a agricultura do lado de cá do Mediterrâneo? Ao falar, Proserpino atirava a mão direita, bruscamente aberta, para diante, quase tocando as orelhas da montada, como se procedesse incessantemente a lances enérgicos de dados. Exprimia-se, minucioso e arredondado, mesmo sobre matérias de que nada sabia, como um professor de retórica. Como é que um cartaginês havia de aspirar à universalidade, ainda que fosse a dissertar sobre vinhedos? Ademais, toda a gente sabe que o feliz crescimento das plantas supõe encomendações aos deuses locais, nos tempos e lugares próprios. Os rituais púnicos, afeiçoados a deuses púnicos, haviam de convencer alguma vez as divindades de Itália ou as que tinham jurisdição sobre os campos da Hispânia

In Mário de Carvalho, Um Deus Passeando pela Brisa da Tarde, Editorial Caminho, Grande Prémio APE 1995, Prémio Fernando Namora 1996, Prémio Pégaso de Literatura 1996, Lisboa, 1994, ISBN 972-21-0974-X.

Cortesia de Caminho/JDACT