Tudo começa na Babilónia
Tabus...
«(…) Não é necessário dizer que não há interdição explícita, nem
inibição consciente ou inconsciente, que nos possa condicionar o exercício de
tal prerrogativa. Fazer amor era uma actividade natural, enobrecida pela
cultura como o acto de comer é idealizado pela culinária. Em nome de quê alguém
se sentiria caído em desgraça, ou diminuído ou culpado perante os deuses,
praticando-o de qualquer maneira que fosse, desde que isto é evidente numa
sociedade já civilizada, ao fazê-lo, não se prejudicasse terceiros ou não se
transgredisse uma interdição aos costumes que preenchem o mosaico da vida quotidiana? Por exemplo, em determinados
dias do ano (o dia 6 do mês de Tashrit,
Setembro/Outubro, para citar um) era desaconselhado ou mesmo proibido,
ignoramos por que razão, fazer amor. E ainda: certas mulheres pareciam ter sido
por alguma razão reservadas
aos deuses, na sua totalidade ou em parte, constituindo uma falta grave um homem
deitar-se com a mulher principal ou fazer um filho às outras. Postas de parte
estas restrições, não só a prática do amor não suscitava o menor problema de consciência, como os próprios
deuses estavam prontos, mesmo que só lhes fosse pedido o que os ritos ditavam,
a contribuir para o seu êxito.
Preces para o êxito no amor
Resta-nos ainda um certo número de preces e de práticas de devoção para [favorecer] o amor de um homem por
uma mulher ou de uma mulher
por um homem e mesmo de um
homem por outro homem (se bem que o simétrico deste, de uma mulher por outra mulher,
não figure na lista, sabemos por outros meios que o amor sáfico não era, evidentemente,
desconhecido); outras eram para
seduzir uma mulher; para conseguir
fazer amor (literalmente: rir,
um dos muitos sinónimos do imaginário da linguagem erótica quando se quer referir
à união dos sexos); outras para o caso
de um homem não estar ainda na disposição de dormir com uma mulher;
outras ainda para que uma mulher se
deixe seduzir, etc.
Eis uma prece para conseguir
suscitar o desejo de uma mulher por um homem (mais explicitamente, para
que ponha os olhos no pénis de
um homem):
A mais bela de entre as mulheres inventou o Amor! Ishtar, que se deleitou com maçãs e romãs [frutos tidos por afrodisíacos],
criou o Desejo. Sobe e desce, pedra-do-amor [termo erótico que, mais do que um
simples estimulante, designa provavelmente o membro em erecção]. Entra em acção
para meu prazer! É Ishtar quem deve
presidir à nossa união!
Devia ser recitada três vezes, sobre uma maçã ou uma romã, convencendo
depois a mulher desejada a comê-la: a partir desse momento, ela abandonar-se-ia
e poder-se-ia fazer amor com ela. Outros procedimentos análogos, como que encantamentos, mas sempre mais ou
menos subordinados ao tema da ajuda que se implora aos deuses e que, por esta
razão, é mais correcto considerar como sacramentais
ou mágicos, dos quais foram
encontradas inúmeras preces que abrangem todos os sectores da vida individual
ou social, são talvez ainda mais eloquentes. Um catálogo, em parte perdido, contava
pelo menos umas setenta; no entanto, não foi possível recuperar mais do que uma
trintena, na sua maioria danificadas. Todas elas são postas na boca da
companheira (a mulher e não a esposa!), tendo por finalidade
conseguir que o amante, resistindo
até ao limite, lhe proporcione assim todo o prazer físico que ela tinha o
direito de esperar da sua união. A esta capacidade de o homem levar, sem
esforço, a mulher a atingir o orgasmo, chamava-se, na linguagem erótica, nish libbi (literalmente, levantar o coração, metáfora
transparente).
Estas preces são de
facto notáveis. Dirigidas aos deuses e às deusas, acentuam até que ponto prazer
sexual e religiosidade eram compatíveis. Elas revelam também que, numa sociedade
aparentemente machista, como
hoje se diz, a mulher, no amor, era realmente igual ao homem: ela, tal como o
homem, tinha direito ao prazer, não era nem um objecto nem um instrumento, mas
uma verdadeira parceira, o que merece ser realçado. Enfim, o próprio conteúdo
dessas preces era especialmente picante: de certo modo, podemos dizer que nos
faz entrar na intimidade do casal em acção. Encontramos uma amante inflamada,
arrebatada e ardente, que diz algumas loucuras e geme de desejo e de prazer.
São excelentes documentos da vida amorosa». In Georges Duby, Jean Bottéro, Amour
et Sexualité on Occident, Société d’Éditions Scientifiques, Paris, 1991, Amor e
Sexualidade no Ocidente, Terramar, Lisboa, 1998, ISBN 972-710-053-8.
Cortesia de Terramar/JDACT