terça-feira, 3 de setembro de 2013

Amor e Sexualidade no Ocidente. Pequena História. Georges Duby. «Elas revelam também que, numa sociedade aparentemente machista, a mulher, no amor, era realmente igual ao homem: ela, tal como o homem, tinha direito ao prazer, não era nem um objecto nem um instrumento, mas uma verdadeira parceira»

Henrique Medina e jdact

Tudo começa na Babilónia
Tabus...
«(…) Não é necessário dizer que não há interdição explícita, nem inibição consciente ou inconsciente, que nos possa condicionar o exercício de tal prerrogativa. Fazer amor era uma actividade natural, enobrecida pela cultura como o acto de comer é idealizado pela culinária. Em nome de quê alguém se sentiria caído em desgraça, ou diminuído ou culpado perante os deuses, praticando-o de qualquer maneira que fosse, desde que isto é evidente numa sociedade já civilizada, ao fazê-lo, não se prejudicasse terceiros ou não se transgredisse uma interdição aos costumes que preenchem o mosaico da vida quotidiana? Por exemplo, em determinados dias do ano (o dia 6 do mês de Tashrit, Setembro/Outubro, para citar um) era desaconselhado ou mesmo proibido, ignoramos por que razão, fazer amor. E ainda: certas mulheres pareciam ter sido por alguma razão reservadas aos deuses, na sua totalidade ou em parte, constituindo uma falta grave um homem deitar-se com a mulher principal ou fazer um filho às outras. Postas de parte estas restrições, não só a prática do amor não suscitava o menor problema de consciência, como os próprios deuses estavam prontos, mesmo que só lhes fosse pedido o que os ritos ditavam, a contribuir para o seu êxito.

Preces para o êxito no amor
Resta-nos ainda um certo número de preces e de práticas de devoção para [favorecer] o amor de um homem por uma mulher ou de uma mulher por um homem e mesmo de um homem por outro homem (se bem que o simétrico deste, de uma mulher por outra mulher, não figure na lista, sabemos por outros meios que o amor sáfico não era, evidentemente, desconhecido); outras eram para seduzir uma mulher; para conseguir fazer amor (literalmente: rir, um dos muitos sinónimos do imaginário da linguagem erótica quando se quer referir à união dos sexos); outras para o caso de um homem não estar ainda na disposição de dormir com uma mulher; outras ainda para que uma mulher se deixe seduzir, etc.
Eis uma prece para conseguir suscitar o desejo de uma mulher por um homem (mais explicitamente, para que ponha os olhos no pénis de um homem):

A mais bela de entre as mulheres inventou o Amor! Ishtar, que se deleitou com maçãs e romãs [frutos tidos por afrodisíacos], criou o Desejo. Sobe e desce, pedra-do-amor [termo erótico que, mais do que um simples estimulante, designa provavelmente o membro em erecção]. Entra em acção para meu prazer! É Ishtar quem deve presidir à nossa união!

Devia ser recitada três vezes, sobre uma maçã ou uma romã, convencendo depois a mulher desejada a comê-la: a partir desse momento, ela abandonar-se-ia e poder-se-ia fazer amor com ela. Outros procedimentos análogos, como que encantamentos, mas sempre mais ou menos subordinados ao tema da ajuda que se implora aos deuses e que, por esta razão, é mais correcto considerar como sacramentais ou mágicos, dos quais foram encontradas inúmeras preces que abrangem todos os sectores da vida individual ou social, são talvez ainda mais eloquentes. Um catálogo, em parte perdido, contava pelo menos umas setenta; no entanto, não foi possível recuperar mais do que uma trintena, na sua maioria danificadas. Todas elas são postas na boca da companheira (a mulher e não a esposa!), tendo por finalidade conseguir que o amante, resistindo até ao limite, lhe proporcione assim todo o prazer físico que ela tinha o direito de esperar da sua união. A esta capacidade de o homem levar, sem esforço, a mulher a atingir o orgasmo, chamava-se, na linguagem erótica, nish libbi (literalmente, levantar o coração, metáfora transparente).
Estas preces são de facto notáveis. Dirigidas aos deuses e às deusas, acentuam até que ponto prazer sexual e religiosidade eram compatíveis. Elas revelam também que, numa sociedade aparentemente machista, como hoje se diz, a mulher, no amor, era realmente igual ao homem: ela, tal como o homem, tinha direito ao prazer, não era nem um objecto nem um instrumento, mas uma verdadeira parceira, o que merece ser realçado. Enfim, o próprio conteúdo dessas preces era especialmente picante: de certo modo, podemos dizer que nos faz entrar na intimidade do casal em acção. Encontramos uma amante inflamada, arrebatada e ardente, que diz algumas loucuras e geme de desejo e de prazer. São excelentes documentos da vida amorosa». In Georges Duby, Jean Bottéro, Amour et Sexualité on Occident, Société d’Éditions Scientifiques, Paris, 1991, Amor e Sexualidade no Ocidente, Terramar, Lisboa, 1998, ISBN 972-710-053-8.

Cortesia de Terramar/JDACT