domingo, 29 de setembro de 2013

Fernão de Magalhães. Escritos Literários e Políticos. Coligidos e publicados sob a direcção de Arlindo Varela. Latino Coelho. «Tomada lingua com a gente da terra, que eram os celebrados patagões, de quem se phantasiavam tantas fabulas, e captivos alguns d'elles, entraram os capitães de três das caravellas em aberta insurreição contra Magalhães»

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NOTA: De acordo com o original

«(…) Mediando os concertos entre Magalhães e o imperador, succedêra enlouquecer o cosmographo Faleiro, que até então fora sócio de Fernão, com o que teve Magalhães de se embarcar sem o companheiro, tomando á sua conta exclusiva os futuros cuidados d'aquella empresa.
Designado Fernão de Magalhães por capitão-mór da expedição entrou a governar a Trinidad, que ia por capitania. A segunda caravella Santo António capitaneava João Cartagena. A terceira, por nome Concepcion, mandava Gaspar Quesada, e fazia n'ella o officio de piloto o celebrado Elcano, que mais particularmente partilhou com Magalhães as glorias d'esta longa navegação e descobrimento. A quarta, cuja invocação era Victoria, commandava Luiz Mendonça. Na caravella Santiago embarcou de capitão João Serrano, que era ao mesmo tempo piloto-mór de toda a frota. Tripulavam ao todo as cinco embarcações duzentos e trinta e sete homens, que não seriam hoje suficientes para guarnecer um só navio que se destinasse a tão diuturna e aventurosa navegação, como aquella que iam então emprehender.
Sigamos a narração de Gaspar Corrêa, descrevendo as vistas de Magalhães com o imperador, e os aprestos da pequena armada: Fernão de Magalhães foi a Burgos, onde estava o imperador e lhe beijou a mão, e o imperador lhe deu mil cruzados de acostamento para gasto de sua mulher em quanto fosse sua viagem, assentado na vassallagem de Sevilha, e lhe deu poder de baraço e cutello em toda a pessoa que fosse na armada, de que seria capitão-mór; do que lhe assignou grandes poderes; com que tornado a Sevilha, lhe foram concertados cinco navios pequenos, como elle pediu, concertados e armados como elle quiz, com quatrocentos homens de armas, em que lhe carregaram as mercadorias que elle pediu. Os regedores lhe disseram que elle desse as capitanias, do que elle se escusou dizendo que era novo na terra, que não conhecia os homens; que eles os buscassem que fossem bons e fieis ao serviço do imperador, que folgassem por seu serviço de levar trabalhos e má vida que haviam de passar na viagem. O que os regedores muito lhe tiveram a bem e bom aviso, e que aos capitães que fizessem e gentes que levasse primeiro lhes notificassem os poderes que levava do imperador. O que assim fizeram, e em Sevilha buscaram homens de confiança para capitães, que foram João Cartagena, Luiz Mendonça, João Serrano e Pêro Quesada. Esta narração de Gaspar Corrêa discorda apenas do que referem os outros historiadores em dizer que Magalhães levava em sua frota quatrocentos homens, e chamar Pêro Quesada ao que outros escrevem com o nome de Gaspar, que elle próprio depois no decurso da narração lhe restitue.
Largou de Sevilha a armada em 1 de Agosto de 1519, e aos 27 de Setembro desaferrou do porto de San Lucar, aproando ao rumo das Canárias. Tomando terra em Tenerife para refrescar e aperceber-se de vitualhas, passando na volta de Cabo-Verde e indireitando para a America, surgiram na bahia de Santa Luzia, d'onde sairam a 27 de Dezembro. Chegando ao rio da Prata, foi a nau Santiago pelo rio acima, até 25 legoas de sua foz, e veiu trazendo nova de que o rio se alargava para o norte. Foram seguindo a costa para o sul, e aos 42º e 30’ de latitude austral, entraram n'uma grande bahia, a que pozeram nome de S. Mathias, e suspeitando que por ali podesse haver passagem para o mar do sul, a andaram buscando n'aquellas aguas, por umas cincoenta legoas de navegação, sem a poderem descobrir. D'ali se foram, sempre costeando, até surgir na bahia de S. Julião.
Tomada lingua com a gente da terra, que eram os celebrados patagões, de quem se phantasiavam tantas fabulas, e captivos alguns d'elles, entraram os capitães de três das caravellas em aberta insurreição contra Magalhães. Por salvar sua auctoridade e segurar a continuação da empresa, os mandou elle punir de pena capital, depois que já não eram bastantes a reprimil-os o conselho e persuasão, com o que vieram a cessar as alterações que havia na frota e a prevalecerem os desígnios de Magalhães, o qual invernou n'aquellas paragens, em que, como diz Gaspar Corrêa, espalmou e concertou muito bem os navios». In Latino Coelho, Fernão de Magalhães. Escritos Literários e Políticos. Coligidos e publicados sob a direcção de Arlindo Varela, Editores Santos & Vieira, Empresa Literária Fluminense, Imprensa Portuguesa, Lisboa, 1917.

Cortesia de Imprensa Portuguesa/JDACT