Marânus. Marânus
e Eleonor
[…]
II
Marânus e a Pastora
E Marânus julgou que regressara
com a doce manhã, aquela Deusa
que a noite, para longe, lhe levara.
Mas logo viu que tinha junto dele
corpo vivo e sensível, e que um ventre
o concebera, em ânsias de pecado
e de prazer bendito, e o dera à luz
do mundo...
E, então, lhe disse deslumbrado:
Ó minha flor dramática e animal!
Eva, filha do amor, em ti saúdo
o divino pecado original
e a dor que multiplica as
criaturas!
A imaculada seiva da paisagem
corre nas tuas veias, revigora
a tua moça e delicada imagem,
pela eterna Beleza trabalhada.
E, depois, tua fronte emoldurando,
tornou-se negro, esparso, é teu cabelo;
e seus fios remotos vão prender-se
à estrela de alva, à lira, ao sete-estrelo!
Essa tua presença comovida,
não termina em teu vulto, e se prolonga,
e abrange o céu, o inferno, a morte e a vida,
e se revela a Deus, na escuridão.
Onde é que finda a cor da tua face?
Onde começa a luz do teu olhar?
E cada beijo teu 1á vai, lá vai,
sempre, através do Vácuo, a cintilar,
dando às nuvens o fogo que as devora,
dando aos astros um novo resplendor,
e àquele facho, a arder, que a bela aurora
agita, no ar azul, queimando as trevas!
E a Donzela, corando e estremecendo,
enleada ficara e perturbada...
Mas, por fim, num esforço, recorrendo
a todo o seu vigor, assim lhe disse:
Quem és tu? De onde vens? Na tua
fronte,
paira o vago crepúsculo infinito
da distância...
E, por isso, num instante,
meus olhos fascinaste! E, se
medito
nessas tuas palavras, onde eu
toda
revivo, em formosura e
sentimento,
meu coração acorda, alvoroçado,
como quem ouve, manhã cedo, o
vento
bater de encontro às portas e às
janelas;
e, estremunhado ainda, se levanta
e vê que mal brilham as estrelas,
no lívido recorte do horizonte.
E Marânus, surpreso, emudeceu...
Mas, animado de íntima coragem,
olhando-a, num enlevo, lhe falou,
mais do que a ela própria, à sua imagem:
Meu novo amor e nova aparição!
Verdadeiro milagre da Beleza,
não és vago fantasma, sonho vão,
que nasce do Desejo insatisfeito!
Se tens na face a cor amanhecida,
sanguínea e palpitante! E dos teus pés
se alonga, idealmente reflectida,
a tua sombra em flor...
Ah, vejo bem
que és deste mundo, e filha do desejo
consumado! E ainda trazes nos teus lábios
perfumes e vestígios desse beijo
que foi a aurora ardente do teu ser!
Misterioso beijo, que me exalta
e me embriaga tanto! E que me aviva
esta fome carnal do meu espírito,
que ele tem fome, sim, de carne viva!
[…]
In Teixeira de Pascoaes, Marânus, Prefácio de Eduardo Lourenço, Assírio
& Alvim, Lisboa, 1990, ISBN 972-37-0261-4.
A amizade de TMA. Boas melhoras...
Cortesia de Assírio & Alvim/JDACT