“Vou respirar fundo, dar uma
volta, mirar as estrelas”
Experiências de Duplo e de Além Mundo em Pascoaes
«(…) Onde este platonismo me parece ter tido o seu florescimento mais
avançado foi num autor como Sohravardi, século XII, que no seio da
filosofia árabe fundiu Platão com antigas tradições persas. O que daí resultou
foi um entendimento distinto da manifestação dos dois planos de conhecimento, o
das ideias e o das coisas. Por um lado o corpo, embora permanecendo um
vestuário desajustado à alma, capaz apenas de focar um conhecimento sensível,
atenua a oposição tenaz com a alma; por outro lado, a alma, se bem que mantendo
a sua natureza de alienígena, adapta-se ao corpo, podendo até perder de todo a
memória do lugar de origem. No platonismo de Sohravardi a alma quando
chega à Terra para encarnar no corpo que esta lhe fabrica deixa um duplo no lugar de origem. Da relação entre
a alma encarnada e o duplo que nunca abandonou o mundo original resultam
situações distintas: se o diálogo existe, a memória da pátria original não
desaparece, antes se desenvolve, arrastando nesse encontro faculdades próprias
ao corpo ou ao que neste há do mundo sensível; se a alma perde o contacto com o
duplo, a memória da origem apaga-se e em vez de ser a alma a sublimar o corpo é
o corpo a somatizar a alma. Um dos artigos mais notáveis deste platonismo é a forma
como ele concebe o diálogo entre a alma e o seu duplo.
E talvez mais do que diálogo seja adequado falar aqui em conhecimento,
já que a alma ao encarnar conhece o
corpo e perde parte do conhecimento anterior; essa parte perdida diz respeito
ao duplo que não acompanha a alma no momento da encarnação. Para reconquistar o
que perdeu, para voltar ao convívio daquilo que esqueceu, a alma humana precisa
de desenvolver um modo próprio de conhecimento. Se os sentidos corporais conhecem
o mundo empírico da realidade material e o intelecto racionaliza em leis esse
primeiro conhecimento, a imaginação é
o órgão da alma encarnada capaz de conhecer o duplo. É pela imaginação que a
alma encarnada pode regressar ao contacto com o mundo original donde veio. Se
não quiser perder a ligação, se quiser aprofundar as relações com o duplo, a
alma precisa de valorizar a imaginação, tornando-a cada vez mais activa e
presente.
Isto quer dizer que o lugar de origem das almas tem um estatuto análogo
ao da imagem ou é ele mesmo uma imagem. E por ser nem mais nem menos do que uma
imagem é que o duplo se deixa apreender ou conhecer pela imaginação. A imagem
não se confunde com a ideia; está porém dela muito mais próxima do que a
realidade sensível. Na gnoseologia de Platão há o exterior da caverna com o
oceano de luz das ideias e há o interior com as pálidas e apagadas sombras que
são as coisas». In António Cândido Franco, Notas para a Compreensão do Surrealismo em
Portugal, Lisboa, Peniche, Évora, Editora Licorne, 2012, ISBN
978-972-8661-90-8.
Cortesia de Licorne/JDACT