Com
Camões na encruzilhada
«(…) E prossegue o
cotejo: um sofreu dois dias, outro seis anos, um para a glória do mundo, outro
para a glória de Deus, um com nome nos arcos triunfais, outro com nome no céu. Deste
encadeamento, novos e bem logrados testemunhos nos sairão ao caminho lá mais
para diante. Entretanto, limitemo-nos a reconhecer um outro curioso contributo
de Jerónimo Román: conhecedor das duas anteriores interpretações sobre o
traslado dos ossos do Infante, ousadia de um sobrinho do rei de Fez ou
intercâmbio combinado com Afonso V, a ambas apresenta para escolha, mas bem
evidente nos parece que, para a segunda e mais historicamente comprovada, se
encaminha.
Roda o tempo, persiste o
martírio do Príncipe no imaginário peninsular, continuam os historiadores a
alimentar o culto pelo cativo de Fez. E alguns, como frei Luís de
Sousa, com particular brilho, em páginas que ainda hoje lemos com gosto,
porque informam e deleitam, aclaram factos e cativam a sensibilidade. Cita o
escritor as suas fontes, mas não sem o cuidado de, por vezes, as interrogar,
como teremos oportunidade de verificar. Sobre as principais, afirma: Seguimos na vida deste Santo a relação que d’ella
escreveu João Alvrez, Cavalleiro da Ordem de Avis que foi seu Secretário, e com
elle residio em Fez, reformada depois polo Padre Frei Hieronymo Ramos da Ordem
de S. Domingos. Chegando a Lisboa [o
corpo] foi depositado no nosso mosteiro de Freiras do Salvador, onde a Cronica
del Rey dom Affonso diz que pregou o Prior de S. Domingos (…).
O cerne da descrição
está, uma vez mais, nas fadigas do cativeiro, entre as quais de somenos não é a
fome, mas muito bem marcadas ficam as virtudes do Santo, assim repetidamente
apresenta ele o infante Fernando, pontuadas desde o seu miraculoso nascimento, disponibilidade
para obedecer era hum dos que mais …reprovavão a expedição a Tânger, dedicação
fora do comum à prática religiosa e às normas fundamentais da vida cristã, caridade,
humildade, liberalidade atestadas a cada momento. A paciência no sofrimento
merece-lhe a visão da Virgem huma Senhora
sobre hum Throno assentada, acompanhada
de grande número de Bemaventurados, no meio deles, um que numa das mãos
tinha humas balanças penduradas
e outro com hum calis, e hum livro
aberto, no qual se deixavão ler em letras de ouro as primeira palavras do
Evangelho de S. João (.…)
Identificados ficariam,
pelos seus símbolos, estes dois acompanhantes de Nossa Senhora; mesmo assim, frei
Luís não deixa de reconhecidamente os nomear, com apuro e imaginação, deste
modo retomando, para a engrandecer, a aparição que em anteriores escritos
havíamos encontrado. Entre os milagres, distingue-se a cura do cego mouro, mas
rápida alusão se faz também a muitos outros, sobretudo de restabelecimento de enfermos.
Santo, e como tal, por todos venerado, era, pois, este Infante que por Deus
se resignava a tantos e tão fortes sofrimentos; como santo seria
recebido na bem-aventurança, após a morte e o seu corpo teria jus a especial e magnificente
sepultura. Não descuremos, porém, quatro curiosas observações.
A primeira tem a ver com a semelhança com Régulo e
com os Décios, inicialmente aduzida para que possa concluir-se, depois
de contados os respectivos feitos, pela supremacia de um príncipe que se entrega aos enemigos da fé por salvar
os seus que vê perdidos.
A segunda decorre da exaltação de um comportamento de quem sempre
esteve contra a entrega de Ceuta, não hesitando o autor em afirmar que, à
resolução das cortes, obrigou o voto do
mesmo infante, que, como verdadeiro Catholico, e amigo da sua pátria, advertio
em segredo a el-Rei que tratasse do maior bem da Espanha, e mais honra de
Portugal, antes que da vida de hum só homem.
A terceira prende-se com uma precisão relativamente à
principal fonte: há quem admita que, só a partir de 1441, começaram os tormentos, seriam as duas fases do cativeiro,
de acordo com o conteúdo de uma carta que
se mostra no Convento da Batalha escrita polo Infante.
A quarta e última reporta-se à trasladação final e à
diversidade de opiniões sobre como decorreu nos
meios, e modos por quem foi trazido há variedade entre os escritores, concordando
todos na certeza da vinda».
In Maria Idalina Rodrigues, Do Muito Vertuoso Senhor Ifante Dom Fernando a El Príncipe Constante, Via Spiritus 10, 2003.
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