sábado, 21 de setembro de 2013

Outros Tempos. Grandes Reportagens. Amador Patrício. «Chegados ao Paço, desceram de seus cavalos, subiram a escada e foram até a câmara onde estava a rainha. O porteiro, logo que entrou o Mestre, quis cerrar a porta, para que não passasse mais nenhum. Mas o Mestre João fê-los entrar a todos e dirigiu-se logo ao estrado onde estava a cunhada»

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Uma Revolução em Lisboa. Lisboa, 7 de Dezembro de 1383
«Grande alvoroço vai por esta cidade de Lisboa! Assuadas, tumultos, mortes, prenúncios de mais graves acontecimentos. Iminência de nova guerra com Castela? Mas também uma fé viva, no coração do povo, e o desejo ardente de, todos os bons portugueses em volta do Mestre, defenderem a independência de Portugal. O Mestre! Anda seu nome aclamado pelas ruas da cidade, desde que ontem tornou a ela.
Foi assim: Era já o sol nado, quando a Lisboa voltou mestre João, Mestre de Aviz, acompanhado dos seus, o comendador de Juromenha, Fernão de Álvares, Lourenço Martins de Leiria, Vasco Lourenço Meirinho, Lopo Vasques e outros. Eram vinte, com cotas, braçais e espadas cintas, como homens caminheiros. Chegados ao Paço, desceram de seus cavalos, subiram a escada e foram até a câmara onde estava a rainha. O porteiro, logo que entrou o Mestre, quis cerrar a porta, para que não passasse mais nenhum. Mas o Mestre João fê-los entrar a todos e dirigiu-se logo ao estrado onde estava a cunhada, para a saudar. A Rainha, rodeada de algumas das suas donas e acompanhada do conde de Barcelos, do conde Álvaro Peres, de Fernão Afonso de Samora e de outros fidalgos, ouvia o conde João Fernandes que, de joelhos,
lhe falava baixinho. Ao ver o Mestre, levantou-se e perguntou-lhe: - Irmão, que é isso? A que tornastes de vosso caminho? - Porque João partira na véspera, com ordem da Rainha, acordada em conselho para levantar as terras do Mestrado e algumas vilas e castelos em redor, em defesa da fronteira ameaçada pelo rei de Castela, que dá mostras de querer entrar em Portugal. Justificou-se o Mestre de Aviz dizendo que voltara a Lisboa porque, para a defesa das terras de entre Tejo e Guadiana, que lhe fora confiada, era insuficiente a gente de que dispunha, e que portanto lhe desse a Rainha mais vassalos, para que ele a pudesse bem servir, como cumpria a sua honra e ao serviço real. Achou a Rainha razoável o pedido e mandou chamar João Gonçalves, seu escrivão da puridade, para que indicasse quem poderia servir com o Mestre. Enquanto João Gonçalves e os seus escrivães consultavam o livro de vassalos daquela comarca e preparavam as convocações, começaram os condes a convidar o Mestre de Aviz a comer com eles, inclusive o de Andeiro, mas de todos ele se escusou dizendo que já tinha mandado preparar o jantar. Consta que pôs logo o conde de Barcelos ao corrente das suas intenções e que, pretendendo este acompanhá-lo na temerária empresa, João insistiu por que partisse, pois, tanto que tudo fosse feito, iria ter com ele.
Desconfiou o conde João Fernandes daquele retorno precipitado do Mestre, pelo que ordenou à sua gente que se fosse armar. Esta a razão por que nenhum dos seus estava presente quando o mataram, o que evitou, sem dúvida, que as coisas se passassem mui diferentemente, ou, pelo menos, que houvesse maior efusão de sangue.

Chegada a hora de comer, insistiu novamente João Fernandes para que o Infante jantasse com ele. Seria talvez a maneira de o ter mais vigiado. O Mestre manteve a sua recusa; mas como o conde teimasse e fizesse menção de ir mandar preparar rapidamente a comida, atalhou aquele: - Não vades, que eu vos hei-de falar duma coisa, antes que me vá, e logo me quero ir porque são horas de comer. Despediu-se da rainha, tomou o conde pela mão e conduziu-o a uma grande sala contígua à câmara em que estavam. Seguiram-nos os companheiros do Mestre, que já sabiam o que se ia passar, e, mais cerca, Rui Pereira e Lourenço Martins. Uma vez ali, o Mestre João levou o conde de Andeiro para junto duma janela e falou-lhe tão baixo que ninguém conseguiu ouvir o que lhe dizia; todavia, afirma-se que as frases trocadas foram estas: - Conde, eu me maravilho muito de serdes pessoa que eu estimava e trabalhardes vós de minha deshonra e morte! - Eu, Senhor?! - replicou ele. - Quem vos tal coisa disse mentiu-vos mui grão mentira.
O Mestre, que mais vontade tinha de o matar que de se travar de razões, tirou logo um cutelo comprido e mandou-lhe um golpe à cabeça. Não seria a ferida mortal, pois que o conde ainda tentou acolher-se à câmara da rainha. Os outros, porém, logo que isto viram, rodearam-no, desembainharam as espadas, e foi Rui Pereira quem, duma estocada, o matou de pronto. Quiseram outros feri-lo também, mas o Mestre mandou-os estar quedos e nenhum se moveu. A seguir, mandou a Fernão Álvares e Lourenço Martins que fossem fechar as portas do palácio para que ninguém entrasse, e dissessem ao seu pajem que corresse pelas ruas bradando que queriam matar o Mestre. Era o sinal combinado com Álvaro Pais para o levantamento.
Entretanto a rainha, que tinha ouvido o ruído daquela cena, mandou ver o que se passava; ao ser informada do sucedido, rompeu em lamentações pela morte do seu amado conde, mas, cheia de temor, não ousava condenar os matadores. Ordenou apenas que preguntassem ao Mestre se ela ia morrer também. - Dizei lá à rainha, minha Senhora, - respondeu ele - que esteja sossegada em sua câmara, porque não tem que temer. Eu vim unicamente para fazer isto a este homem, que bem mo havia merecido».

In Amador Patrício, Grandes Reportagens de Outros Tempos, ilustração de Martins Barata, prefácio de Caetano Beirão, Empreza Nacional de Publicidade, Minerva, 1938.

Cortesia de Minerva/JDACT