O homem e a hora são um só. In Mensagem
Não é alegria nem dor esta dor com que me alegro. E a minha bondade inversa
não é nem boa nem má. In Hora Absurda
Genialidade Absurda
«Na introdução que antepôs às Cartas de Fernando Pessoa a Armando Côrtes-Rodrigues,
Joel Serrão escreveu as seguintes palavras que, se bem que o coloquem no polo oposto
do que visamos, têm contudo o mérito de chamarem a questão ao terreno que reputamos
o mais próprio: Afigura-se-me que o problema dos heterónimos de Pessoa tem a
mesma explicação que a dualidade
irredutível de Antero: a complexidade da alma humana, acentuada nos temperamentos
poéticos geniais, complexidade que não invalida a unidade psíquica das
irredutibilidades expressas esteticamente... Se Antero tivesse atribuído ao poeta
nocturno e ao apolíneo, que ele foi, nomes diferentes, com uma genealogia, profissão,
características somáticas, como Pessoa fez aos seus heterónimos, aí teríamos um
complexo problema, de raiz semelhante ao que agora nos preocupa....
Há com efeito em Antero o quer que seja (que não importa agora investigar, mas
que distinguimos da tal dualidade, tão
convencional em sua abstracta sistematização) que não só confere uma certa legitimidade
à hipótese de Serrão, como ainda, num sentido muito mais geral (de que, para nós,
tal hipótese não passaria dum aspecto particular) justificou que Pessoa visse nele
um precursor da modernidade. Seria fácil,
aliás, estabelecer um nexo entre o poeta da razão-em-crise, que ele foi, e os do
irracional que se lhe seguiram, reservando a Pessoa, entre uns e outros, a posição
intermédia de jongleur dos fragmentos do racional. Do ponto que agora
nos importa convém acentuar, contudo, que o que tornou Antero um caso ainda à parte não foi senão a circunstância
exacta de ter lutado, em vão embora, contra a corrupção dos tempos, e ter assumido
uma posição que em última instância o levaria a acompanhar o seu navio no naufrágio.
Assim,
longe de nos quadrar que Antero justifique
Pessoa, preferimos que no-lo ajude a compreender à contra-luz. Para o que nos limitaremos
a perguntar: Que teria sucedido a Antero se, cativo dum pendor literário sem dúvida
aberrante, tivesse permitido que se sentassem à mesa redonda da sua intimidade todas as tendências espirituais de que
os Sonetos
dão fé, acarinhando-as, impulsionando-as, glosando-as em obras de acomodada e parcimoniosa heteronímia divergente? Formulada
a pergunta como foi, torna-se ocioso responder, pois todos reconhecemos que só o
fundo de verdade em que a problemática de Antero visou, sem qualquer dúvida, uma
resolução pode conferir à sua obra aquela humanidade sem a qual ela não seria. Levado entre combates sempre
renovados [a] disputar dia a dia n mão dos Fados / Uma parcela do saber augusto
(Espectros), ele mesmo referiu ter essa
preocupação influído os poemas de mais aparente evasão, como se depreende do seguinte
passo duma carta particular: esse estado de
espírito [o carácter desolado de certos poemas], no meio da sua violência, representa
um contínuo impulso para a verdade e para o bem, e isso deve ser levado em
conta ao poeta. É o que resume, hiperbolizando em- bora, este outro passo da
sua correspondência: eu ainda não desisti
de abrir, ainda que seja roendo com os dentes e ?t boca em sangue, o muro de bronze
do destino.
Quer dizer:
ninguém afinal melhor do que Antero permite aperceber o que há de implícito no conceito
de personalidade como teor de vida, convergência de tendências, estruturação ideológica,
fidelidade a um móbil, e o que por aí mesmo tem sempre de implicar-se numa candidatura
ao génio como realização superiormente ímpar de tais condições. Tal como em todos
os grandes artistas, a arte de Antero corresponde directamente à problemática do
homem servindo-a, só não tendo Antero chegado à fase a que chegam os maiores de
por seu turno a servir em virtude de, impossibilitado de atingir a visão unívoca
que perseguia, lhe estar vedado esse grau de
identidade da arte com a vida.
Ora em Fernando Pessoa o que logo (e sempre) nos punge é aquela solução
tão por demais levianamente fácil da heteronímia.
Fácil, está claro, não porque destituída
de talento, pois, ao invés, só foi possível mediante um talento que diremos excessivo, mas porque tão comprazida em trilhar
um caminho da mais descarnada artificialidade. Isso nos leva a compreender por que
teve Fernando Pessoa necessidade de cultivar, tão insistentemente, o mito duma inspiração
heterónima premente, misteriosa, imprevisível, de que ele próprio, ao fim e ao cabo,
se terá tornado, quem sabe, a própria vítima. É já hoje, de resto, suficientemente
conhecida a quota-parte de engenho e humor que entrou nesse mito. E pode facilmente
aperceber-se um nexo de necessidade entre essas pretensões e a obra que, denunciando
a sua interdependência, dispensa inteiramente, do estricto ponto de vista literário,
quaisquer outras conjecturas». In Mário Sacramento, Fernando Pessoa, Poeta
da Hora Absurda. Contraponto, University of Toronto, Lisboa, 1960.
Cortesia de PCampos/JDACT