segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Poesia. Mia Couto. «Houve lágrimas que não matei porque me fiz de gestos que não prometi e na noite abrindo-se como toalha generosa servi-me do meu desassossego e assim me acrescentei aos que sendo toda a gente não foram nunca como toda a gente»

ElenaKukanova/Cortesia de wikipedia

Ser que nunca fui
Começo a chorar
do que não finjo
porque me enamorei
de caminhos
por onde não fui
e regressei
sem ter nunca partido
para o norte aceso
no arremesso da esperança.

Nessas noites
em que de sombra
me disfarcei
e incitei os objectos
na procura de outra cor
encorajei-me
a um luar sem pausa
e vencendo o tempo que se fez tarde
disse: o meu corpo começa aqui
e apontei para nada
porque me havia convertido ao sonho
de ser igual
aos que não são nunca iguais.

Faltou-me viver onde estava
mas ensinei-me
a não estar completamente onde estive
e a cidade dormindo em mim
não me viu entrar
na cidade que em mim despertava.

Houve lágrimas que não matei
porque me fiz
de gestos que não prometi
e na noite abrindo-se
como toalha generosa
servi-me do meu desassossego
e assim me acrescentei
aos que sendo toda a gente
não foram nunca como toda a gente.
Setembro 1982

Nocturnamente
Nocturnamente te construo
para que sejas palavra do meu corpo.

Peito que em mim respira
olhar em que me despojo
na rouquidão da tua carne
me inicio
me anuncio
e me denuncio.

Sabes agora para o que venho
e por isso me desconheces.
Julho 1981

Desencontro (1)
Não ter morada
habitar
como um beijo
entre os lábios
fingir-se ausente
e suspirar
(o meu corpo
não se reconhece na espera)
percorrer com um só gesto
o teu corpo
e beber toda a ternura
para refazer
o rosto em que desapareces
o abraço em que desobedeces.
Outubro 1979



Desencontro (2)
No avesso das palavras
na contrária face
da minha solidão
eu te amei
e acariciei
o teu imperceptível crescer
como carne da lua
nos nocturnos lábios entreabertos.

E amei-te sem saberes
amei-te sem o saber
amando de te procurar
amando de te inventar.

No contorno do fogo
desenhei o teu rosto
e para te reconhecer
mudei de corpo
troquei de noites
juntei crepúsculo e alvorada.

Para me acostumar
à tua intermitente ausência
ensinei às timbilas
a espera do silêncio.
Julho 1981

Poemas de MiaCouto, in ‘Raíz de Orvalho’

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