«(…) Um cronista castelhano contemporâneo da rainha Joana escreveria anos
mais tarde de Enrique que durante estes
anos da mocidade se entregou (...) a abusos e deleites dos quais fez hábito
(...), de donde lhe veio a fraqueza do seu ânimo e diminuição da sua pessoa
(...). Esses deleites que a mocidade costuma exigir e que a honestidade deve negar.
Em finais de Julho de 1440, o rei de
Aragão enviou uma carta ao conde de Barcelos e ao prior do Crato, anunciando a
chegada do jovem Diego de Saldaña, escrivão
de ração da rainha, nossa irmã, e pedindo-lhes que o ouvissem como se fosse
ele próprio em pessoa. É provável que este futuro servidor castelhano da rainha
Joana, cabeça de uma importante linhagem da nobreza portuguesa, tenha
conseguido convencer a rainha Leonor a que dissimulasse,
uma vez que, pouco depois da sua chegada, Leonor negociou um acordo, fingido, segundo o cronista Rui de Pina,
com o infante Pedro, por meio de um antigo escrivão do falecido rei Duarte,
nesse momento secretário da rainha e que mais tarde se encarregaria de
administrar os bens da infanta D. Joana.
Enquanto esta simulação tinha lugar em Almeirim, onde D. Leonor residia
com as suas filhas, em Castela começaram a correr rumores sobre o que não
ocorrera durante a primeira noite de casados do príncipe Enrique e da sua
primeira esposa, Blanca de Navarra. Segundo uma importante crónica castelhana,
Blanca ficou tal qual nasceu, com o que
ficaram todos muito irritados. Outro cronista real contemporâneo da rainha
Joana narraria que os esposos dormiram na
mesma cama e a princesa ficou tão inteira como vinha. Para Alonso
de Palencia, futuro difamador da rainha Joana, os gozos de alegria dos festejos aconteceram mas sem o verdadeiro gozo
do matrimónio (...). Os cortesãos começaram imediatamente a fazer circular
rimas e quadras atrevidas zombando da cópula não consumada e atribuindo maior
capacidade para o coito aos homens com quem Enrique se misturava. Segundo
um médico do príncipe, o futuro marido de Joana sofrera, no início da
puberdade, um acidente que, para além de lhe causar a deformação do nariz, lhe
provocou a perda de força. De acordo
com um relatório mandado realizar quando Joana já estava casada com ele, este
mesmo médico declarou que, pouco depois de Enrique fazer os doze anos,
descobriu que carecia de verga potente e
viril, afirmando contudo que se curara posteriormente.
Alonso de Palencia, em plena
campanha difamatória contra Enrique IV e a sua segunda mulher, chegaria
inclusivamente a afirmar que alguns dos seus cortesãos tinham praticado sodomia
para o manter sob o seu controlo. O mais conhecido deles fora, segundo o
cronista palentino, um jovem nobre castelhano, descendente de portugueses
exilados em Castela. Segundo palavras textuais, o que entre eles tinha mais fama de potente era Juan Pacheco,
adolescente astuto que se prestava a qualquer serviço e que não respeitava nada
a não ser a sua própria ascensão no poder, ainda que tivesse de o conseguir à
custa de crimes impuros. Astuto, esperto e hábil, Álvaro tinha-o escolhido
desde criança para servidor de Enrique, acreditando erradamente que o jovem não
se desviaria um milímetro das suas instruções. Como bem conta Palencia,
Juan Pacheco fora anteriormente pajem de Álvaro de Luna, a cuja casa chegara
pelo seu parentesco com a segunda esposa do condestável, uma Pimentel
descendente de um importante nobre português, exilado em Castela em
consequência da batalha de Aljubarrota. Durante uma reestruturação do pessoal da
casa real, o valido colocara o jovem Pacheco perto do príncipe Enrique, mas
numa posição muito subalterna. A inteligência e a capacidade para exercer de
forma convincente a adulação tinham-lhe granjeado o favor do seu senhor, seis
anos mais novo que ele. Dois dias depois da boda de Enrique, Pacheco foi
nomeado alcaide da fortaleza de Logroño. Esta rápida ascensão favoreceria também
a carreira do seu irmão mais novo, Pedro Girón.
Referindo-se ao cariz sexual da influência de Pacheco sobre o futuro marido
de Joana, um historiador jesuíta do século XVI escreveu: Pode suspeitar-se que grande parte desta fábula foi forjada em
consideração dos reis Fernando e dona Isabel, os Reis Católicos. Mas não é por
isso menos certo que esta personagem exercesse sobre Enrique uma poderosa
influência, baseada na sua capacidade para conhecer as debilidades do carácter
do seu senhor e usá-las em seu próprio benefício; trata-se de um aspecto
fundamental para entender o desenvolvimento dos acontecimentos nos quais Joana
de Portugal se veria implicada em Castela». In A Rainha Adúltera, Joana de
Portugal e o Enigma da Excelente Senhora, Crónica de uma difamação anunciada,
Marsilio Cassotti, A Esfera dos Livros, Lisboa, 2012, ISBN 978-989-626-405-5.
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