Ensaios
«(…) Normalmente, Camões não usa n'Os Lusíadas o tempo verbal narrativo.
Quase todos os episódios do Poema são referidos no presente, como se se
estivessem desenrolando à vista do leitor. Releia-se o texto:
E vereis ir cortando o salso argento
os vossos Argonautas, por que vejam
que são vistos de vós […]
O Gama e os seus companheiros cortando o mar em 1497 estão a ser vistos em 1572. E o primeiro episódio do Poema é
mostrado ao rei nos seguintes termos:
Já no largo Oceano navegavam,
[...]
Quando os Deuses no Olimpo luminoso,
onde o governo está da humana gente,
se ajuntam em concílio glorioso,
Este se ajuntam e este
navegavam marcam, desde o
início da narração, o tempo, ou, antes, o não-tempo em que ela é relatada.
Quanto ao uso do presente, não são necessários muitos comentários. Mas é
interessante notar que ele é usado não apenas para referir acções que são
passado em relação ao Autor e ao destinatário da mensagem (mas que podem
supor-se estarem a ser vistas
por eles actualmente), mas que também o são relativamente aos protagonistas da
história.
No canto VI, como se sabe, assistimos à grande tempestade e à
intervenção das Nereidas que a apazigua; após isto, os nautas avistam,
na manhã clara, terra da Índia. Camões faz aqui uma longa pausa na
narrativa, com considerações e uma famosa exortação aos povos da cristandade,
após o que retoma no canto VII o fio da história. Nestes termos:
E vejamos, entanto, que acontece
àqueles tão famosos navegantes,
despois que a branda Vénus enfraquece
o furor vão dos ventos repugnantes,
despois que a larga terra lhe aparece,
fim de suas perfias tão constantes,
onde vem semear de Cristo a lei
e dar novo costume e novo Rei.
O primeiro verso desta estrofe denota a atitude já nossa conhecida de
chamar a atenção para a acção em curso: vejamos
o que. acontece. Está dentro do tempo (ou não-tempo) iniciado com a
primeira estrofe da narração. Do mesmo modo vêm
no verso 7. Mas enfraquece e aparece referem-se a uma acção já
narrada e cuja conclusão é necessária para a acção que vai seguir-se. Neste
momento, a costa da Índia já apareceu
e Vénus já amainou ou enfraqueceu
a tempestade. Este uso do presente para denotar um acontecimento já referido na
narrativa, depois que acontece,
despois que enfraquece, repugna
violentamente à gramática da língua, e por isso mesmo é muito significativo de
uma tendência constante em todo o Poema.
Quanto ao uso do imperfeito
(que não é um tempo narrativo, mas denota um presente inactual), o que há de
mais interessante a assinalar é que em vários passos d'Os Lusíadas aparece como forma alternativa do presente, como se não
houvesse qualquer diferença temporal entre um presente referido a hoje e um
presente referido a ontem. Exemplo disso são as duas estrofes seguintes do
justamente célebre episódio em que Vénus atravessa, correndo, o Olimpo:
Os crespos fios d'ouro se esparziam
pelo colo que a neve escurecia;
andando, as lácteas tetas lhe tremiam,
com quem Amor brincava e não se via.
Da alva petrina flamas lhe saíam,
onde o Minino as almas acendia.
Polas lisas colunas lhe trepavam
desejos, que como hera se enrolavam.
Cum delgado cendal as partes cobre
de quem vergonha é natural reparo;
porém nem tudo esconde nem descobre
o véu, dos roxos lírios pouco avaro;
mas, pera que o desejo acenda e dobre,
lhe põe diante aquele objecto raro.
Já se sentem no Céu, por toda a parte,
ciúmes em Vulcano, amor em Marte.
In António José Saraiva, Estudos sobre a Arte D’Os Lusíadas, Gradiva
Publicações, Lisboa, 1996, ISBN 972-662-476-2.
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